Timóteo entendia tudo

 

 

Agnaldo Timóteo foi grande. Famoso, popular, polêmico, entendido. Tudo isso e um pouco mais.

 

A depender da idade do nobre leitor, é possível que sua mãe, tia ou avó saibam de cor uma das canções do mineiro de Caratinga que vingou no Rio de Janeiro com a regravação de The House of The Rising Sun, dos ingleses The Animals, em 1965. A versão em português projetou o cantor dó de peito, de voz potente, dado a firulas estilísticas e dramaticidade nas interpretações. No mesmo ano em que gravou a versão de Frank Jorge também lançou, pela gravadora Odeon, Surge um Astro.

 

Antes de surgir e soltar a voz, fez um monte de coisas – foi cantor de circo, engraxate, vendedor de salgadinhos, torneiro mecânico. Ainda em 1965, foi motorista da cantora Angela Maria. Não sabe quem ela foi? É possível que sua mãe, tia ou avó saibam.

 

Com Obrigado, querida, de 1967, disco que contava com Meu Grito, de Roberto Carlos, Timóteo provou da fama e emplacou a música entre as mais ouvidas no país. Cabe ressaltar o que destaca Tito Guedes em Querem Acabar Comigo, livro recém-lançado que aborda a crítica musical produzida sobre a obra do rei: “Se em 1965 Roberto era um ‘debiloide’, de quem não se podia nem entender o que cantava, no início de 1968 ele já recebia a chancela de ‘um cantor de grandes qualidades’”, destaca o autor, sobre o encaixe (se natural ou não são outros quinhentos) do cantor capixaba nos parâmetros que a crítica definia, em cima de suas convicções, sobre o que era popular ou não.

 

Agnaldo Timóteo também nunca se deu muito bem com a imprensa e com as críticas, e mesmo assim vendia muito. Aqui cabe uma reflexão quanto ao que é popular, ou de bom gosto. Afinal, “não há nada mais Z do que a classe A”, disse Caetano Veloso ao microfone quando Odair José, em maio de 1973, foi vaiado ao cantar Vou Tirar Você Desse Lugar no festival Phono 73, no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo.

 

Timóteo também foi vaiado (em 1970, no programa Som Livre Exportação, apresentado por Elis Regina na TV Globo), mas era astro popular, que fique claro. Com as vendas exorbitantes na Odeon, foi ele quem possibilitou as ousadias de artistas tidos como engajados – ou intelectualizados, ou progressistas – da então chamada MPB (termo que hoje em nada abarca os caminhos da música brasileira de gosto popular) como – olha ele aí de novo – Caetano Veloso. Eram os números das vendas de Timóteo que geravam lastro para gravação de álbuns de artistas considerados queridinhos da crítica, ou da classe universitária, dentro de um modelo de classe média hoje soterrada pela realidade do país, que cada vez diminui mais o espaço entre os que não têm nada e os que têm muito.

 

 

Entendedor dos entendidos

 

Agnado Timóteo foi o responsável, durante a década de 1970, afundada em um regime de exceção, pelo que o escritor e pesquisador musical Paulo Cesar de Araújo chama em seu livro Eu não Sou Cachorro Não de trilogia da noite: as músicas A galeria do Amor (1975), Perdido na Noite (1976) e Eu pecador (1977), que deram nome a três discos. Corajoso e ousado, o artista abordou a vida notívaga, a solidão dos desejos proibidos e sufocados, a busca do amor entre pessoas do mesmo sexo. Mas com visual e postura de bronco. Elegante, mas bronco, como foi até o fim de sua vida de 84 anos, levada pela Covid em 3 de abril desse ano.

 

Timóteo nunca foi dado à defesa declarada de bandeira nenhuma ligada à sexualidade, mas nem por isso deixou de ser fiel ao que sentia e vivia. Ao longo da vida virou político, vendeu discos nas ruas e tal, mas isso é outra história – o corte aqui é a transgressão de um não transgressor, ou um transgressor não declarado, reconhecidamente popular e amado Brasil adentro. Como dizem, e como tantos outros o fizeram, deu o papo antes do engajamento que vemos multiplicar-se, necessário e bem vindo.

 

Botafoguense apaixonado (pagou, inclusive, o enterro de Mané Garrincha em 1983), transitava entre o respeito à suposta família brasileira e a provocação subliminar. A Galeria do Amor, aliás, é uma das primeiras composições dele, uma crônica do ambiente da Galeria Alaska, ponto de encontro em Copacabana, no Rio de Janeiro, “Um lugar de emoções diferentes/Onde a gente que é gente se entende/Onde pode se amar livremente”, aponta a letra da música. A performance de Timóteo no programa do Bolinha, em 1988, com caras e bocas, complementa o que descreve a canção.

 

Mesmo com a resistência da gravadora em lançar A Galeria do Amor, num Brasil preconceituoso e obscurantista (com o de hoje), fez valer sua verdade. “Eles ficaram meio preocupados quando mostrei a composição, mas eu falei: ‘Gente, isso e uma realidade. Você sai à noite para passear, chega na Galeria Alaska e encontra centenas de pessoas se paquerando. Isso é um fato real. É preciso falar disso. São milhões de pessoas que vivem dessa maneira: homens com homens, mulheres com mulheres. Não se pode fugir dessa realidade hoje no mundo’”, disse, segundo registro de Paulo Cesar de Araújo em seu livro.

 

Em 1977, já no fechamento da trilogia, em Eu Pecador o artista denota sentir certa culpa cristã por seus desejos: “Senhor, eu sou pecador/E venho confessar porque pequei/Senhor, foi tudo por amor/Foi tudo por loucura/Mas eu gostei”.

 

Ainda nesse contexto, existe uma história incrível: Grito de Alerta, composição de Gonzaguinha que foi sucesso na voz de Maria Bethânia, surgiu do relato de uma desventura amorosa de Timóteo com Paulo Cesar Souza para o filho de Gonzagão, no fim dos anos 1970. O nome da música é sugestão de Timóteo, que não teve preferência de gravação. “Puta que pariu Gonzaguinha, eu te conto uma história da minha cama e você dá a música pra Bethânia gravar?!”, indignou-se à época.

 

Timóteo, assim como outros artistas da música supostamente brega ou cafona como Odair José e Wando, teve o devido reconhecimento a posteriori mas, independentemente disso, sempre foi um campeão da AM, frequência que representa (ou irradia), até hoje, parcela profunda da construção do povo, das chamadas classes C e D, do brasileiro comum. “Sou de uma família de um ferreiro e uma doméstica. Tenho o terceiro ano primário, conheço 37 países e nunca fiz feio em nenhum lugar que tenha estado”, disse à apresentadora Luciana Gimenez, em gravação de 24 de março do ano passado. No programa, Timóteo declara que não gostou de Eu, Pecador, filme de Nelson Hoineff que, segundo constata o crítico musical Mauro Ferreira, não demonstrou afeto pelo que captou a câmera. “Falou muito em política”, afirmou Agnaldo na entrevista à eterna ex de Mick Jagger.

 

Conhecido no início da carreira como o “Cauby Mineiro”, Timóteo vive na memória do brasileiro. “Lembro-me de quando tinha uns 13 ou 14 anos. Um dia, indo com minha mãe para o Norte Shopping, vi o Agnaldo Timóteo desfilando na Avenida Suburbana, numa Mercedes-Benz vinho conversível. Claro, era impossível não olhar e ele sabia disso. Outra vez foi quando, já fazendo estágio pelo CEFET-RJ, o vi em uma lanchonete ao lado da Câmara dos Vereadores, fazendo um lanche, quando um fã ou eleitor foi cumprimentá-lo, coisa que eu jamais faria se visse um artista de quem gosto comendo. Ele parou de comer, deu autógrafo, cumprimentou rindo e voltou a comer. Lembro também que, bem depois, junto à minha esposa, o vimos cantando no Méier, na Praça Agripino Grieco. Era ele, uma caixa de som, um microfone e CDs a 10 reais”. O relato do jornalista Fábio Couto, publicado espontaneamente em seu perfil no Facebook na data do falecimento de Agnaldo, é um exemplo entre muitos espalhados por todo o país.

 

Com a saída de cena de Agnaldo Timóteo fecha-se uma cápsula do tempo de cantores voz de trovão, dos quais ele foi grande exemplo, mas não só: foi um dos grandes cantores do Brasil. “Se eu não fosse cantor, eu seria advogado ou então um bandido. Eu tinha que ser famoso”, disse, em entrevista ao Pasquim, de novembro de 1972. E foi. Famoso, popular, polêmico, entendido. Tudo isso e um pouco mais, e assim deve seguir, vivo na memória da música – e da sociedade – que não se preocupa com críticas ou enquadramentos.

 

Celso Chagas

Celso Chagas é jornalista, compositor, fundador e vocalista do bloco carioca Desliga da Justiça, onde encarna, ha dez anos, o Coringa. Cria de Madureira, subúrbio carioca, influenciado pelo rock e pela black music, foi desaguar na folia de rua. Fã de poesia concreta e literatura marginal, é autor do EP Coração Vermelho, disponível nas plataformas digitais.

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