Contra o Cancelamento de Roberto Carlos

 

 

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?? Vocês não estão entendendo nada! Nada!”.

 

Quem nunca ouviu esse discurso inflamado de Caetano Veloso diante da plateia do 3º Festival Internacional da Canção? Ali o baiano defendia sua composição “É Proibido Proibir” e Gilberto Gil porque ambos haviam sido vaiados clamorosamente por conta do sucesso incrível que “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores”, de Geraldo Vandré, havia atingido, chegando ao segundo lugar. Quem venceu foi “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, bastante vaiada também. O que Caetano estava querendo dizer? Que a postura progressista daquela plateia engajada era anacrônica se comparada ao que estava acontecendo no mundo. Era uma gente de esquerda e, ao mesmo tempo, conservadora. Como pode? Mas podia. A Tropicália era o correspondente nacional daquela onda de novidades estéticas e pensantes que vinham de fora. Era o surgimento de uma nova concepção de esquerda, de combate ao sistema, de visão global contra signos do tal sistema. Era misturar chiclete com banana.

 

Sendo assim, a nossa esquerda era conservadora. Era contra a guitarra elétrica, contra o rock, signos que eram relacionados com alienação. O negócio era violão e a exaltação das tradições brasileiras, nada contra, mas, caramba, eram os anos 1960…O mundo mudou mais naqueles últimos três anos de década do que em séculos. De qualquer forma, vários artistas e pessoas marcharam até em passeatas contra a guitarra elétrica, um símbolo do imperialismo americano, segundo eles. Ok, até faz sentido, mas combater guitarra é desdenhar demais da capacidade de apropriação cultural que uma sociedade pode fazer, certo? O que dizer que criações como “Panis Et Circensis”, dos próprios Caetano e Gil, interpretada pelos Mutantes, naquele mesmo ano de 1968? Aquilo estava em pé de igualdade com quase qualquer canção que os próprios Beatles haviam gravado. E isso não é exagero, é fato.

 

É fato também que Roberto Carlos, o cantor mais popular do país àquela época, não era um tropicalista. Ele havia sido um jovemguardista, um ídolo jovem, que liderara a primeira aparição do rock neste país. Logo, RC era alienado, vendido, ianque. Suas letras de amor e diversão adolescente, escritas em pleno alvorecer da ditadura militar, eram repelidas por esta mesma juventude que vaiou Caetano e Gil. Como assim é possível que artistas tão diametralmente opostos em termos de produção estética estivessem no mesmo alvo da multidão? Porque eles representavam concessões estéticas à música que vinha de fora. A nossa cultura sempre foi muito resistente a apropriações estrangeiras, mas extremamente conivente com a chegada de multinacionais e flexibilizações de direitos trabalhistas, não?

 

 

Roberto era um quase-trintão quando deixou de ser um rebelde e adentrou a seara romântica. Não fez isso de olho apenas no mercado, mas ele era – e sempre foi – um cara sincero com seus sentimentos. Sua música é reflexo total disso e acompanhou sua maturidade. O público se espantou com seu grito pós-adolescente em “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, de 1966, quando era bem complicado falar esta palavra numa canção pop. Também viu sua alienação em “As Curvas da Estrada de Santos”, que marcou sua aproximação com a música soul americana. Viu sua visão hippie de Jesus Cristo em “Todos Estão Surdos”, testemunhou seu carinho por um exilado Caetano Veloso em 1972, quando escreveu “Debaixo Dos Caracóis dos Seus Cabelos”, após visitar o baiano em Londres. E viu também Roberto investir nas letras populares românticas, um filão que ele quase inventou, explicitando o conteúdo lírico e levando-o ao quase erótico.

 

Roberto se enxergou um pervertido light em “Ilegal, Imoral Ou Engorda”, afrouxou a fidelidade do casamento com “Amada Amante”. Narrou um ato sexual com metáfora bem acessível em “Cavalgada” e detalhou um idílio tropical-erótico com “Além do Horizonte”. E foi fundo com “Café da Manhã”, “Cama e Mesa” e por aí vai, sempre apimentando o conteúdo. É dele uma das canções mais doloridas da música nacional, “As Baleias”, que narra com minúcias a morte do grande mamífero marinho, em pleno 1981. Claro, para cada uma dessas canções havia uma ode religiosa e à família, amizade, bons costumes. Ele sempre foi um cara conservador, distante da militância política. E a partir de 1984, ele enveredou por um tom cada vez mais popularesco, não sem antes fazer sua cançoneta em homenagem à Nova República, “Verde e Amarelo”.

 

Roberto poderia ter usado sua popularidade a favor de alguma causa política? Sim. Claro. Seria sensacional. Mas ele não fez isso. Falar de uma conivência com um sistema político ditatorial de forma tão explícita como estão fazendo os jovens canceladores da Internet por conta de seu octogésimo aniversário é ignorar a dimensão da obra do sujeito. É não entender nada. É fazer parte de uma juventude conservadora nos costumes e progressista no que diz, possivelmente sem entender.

 

 

Cuidado. Vocês estariam na marcha contra a guitarra elétrica, vaiando Gil e Caetano…

 

OBS: e notem que este texto nem menciona que, como disse o grande Zeca Azevedo, Roberto é o maior cantor brasileiro em atividade ainda hoje.

OBS2: sim, Roberto defendeu moro e bolsonaro e isso é bem triste. Ele, de fato, não é um progressista. É preciso separar as coisas.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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