Surpresa: Masterchef Não é Sobre Comida

 

Dia desses eu fiz um ensopado de quiabo. Nem é das minhas comidas preferidas, mas, por algum motivo, me deu vontade de fazer. Certamente eu desejei reaver alguma lembrança perdida da minha infância, marcada por um desfile de ensopados: cenoura, batata, aipim, vagem, repolho e ele, o quiabo. Comprei o vegetal no mercado, fiz a carne moída, temperei, tive o cuidado necessário para não ficar com baba – consegui – e comi feliz, tendo a impressão de que, por alguns instantes, havia voltado para a Constante Ramos, naquela Copacabana ideal, que não existe há décadas. E voltei. Daí me ocorreu algo interessante, a partir dessa experiência amorosa e pessoal: o Masterchef não é um programa sobre isso. É outra coisa.

Sim, exatamente. Os pensamentos podem soar desconexos, indo do ensopado de quiabo da minha infância,renascido outro dia, ao TALENT SHOW de culinária mais famoso do mundo, cuja nova edição brasileira começou há poucas semanas. E reafirmo: não é um programa sobre a experiência quase mágica de cozinhar para quem você ama ou para você mesmo, seja para sobreviver a mais um dia, seja para voltar ao passado, reavendo gostos e cheiros que se perderam no tempo. É sobre ser melhor que outro, eliminar a concorrência, pensar em como ser lucrativo, experimentar momentos de disciplina quase militar e confiar em gente que talvez não tenha estofo suficiente para aconselhar. Pode ser.

Veja, eu sou um espectador do Masterchef desde a sua segunda edição. A primeira eu perdi nem lembro porquê. Me divirto com o programa e torço para algumas pessoas, mas este envolvimento vem caindo vertiginosamente com o passar do tempo. Pode ser pela falta de novidades, pelos esteriótipos que norteiam a escolha dos participantes – tem sempre um sujeito vestido de cowboy, outro que puxa no sotaque de algum rincão do país, a senhora com cara de avó, o lgbt que enfrenta preconceito – seja pela própria noção que o programa transmite: “vença eliminando a concorrência. Jogue, seja ardiloso, seja malandro, pense somente em você, afinal de contas, isso é um jogo.” E estes participantes farão qualquer coisa que lhes seja mandada, sem questionar.

Nada disso tem a ver com meu ensopado de quiabo. Nem com as refeições que cozinho quase diariamente aqui em casa. Nessa divisão de trabalhos maluca de hoje e, em meio à crise dos últimos três anos, fiquei com a incumbência de pilotar o fogão e o microondas daqui de casa. Sempre gostei de comer e isso deve ter sido importante para assumir a tarefa com o mínimo de responsabilidade. Tem dado certo. Sou espectador assíduo de programas de culinária e comecei cedo, vendo Etty Fraser cozinhando na TV, lá pelos anos 1980. Logo depois enveredei pela Cozinha Maravilhosa de Ofélia, que passava na Bandeirantes, de manhã, e que tinha o singelo quadro das Receitas Econômicas Clock, patrocinado pela linha de panelas de pressão do mesmo nome. Depois me desinteressei um pouco pelo assunto, mas Jamie Oliver me trouxe de volta, quando o vi cozinhando em Truques de Oliver, em alguma noite do GNT nos anos 2000. Desde então, pipocaram programas de culinária, alguns muito bacanas, como o saudoso Man Vs Food, comandado pelo americano Alan Richman, que ia de cidade em cidade nos Estados Unidos, mostrando pratos – especialmente junk food – que tinham algum vínculo com a comunidade local. Culinária é isso, é mais que competição.

Mas, sim, não sou ingênuo a ponto de pensar que vivemos num mundo perfeito em que todos têm espaço e chance. O ramo da gastronomia, justo por conta do interesse crescente que surgiu nas primeiras décadas do século 21, arremessou consumidores e empreendedores em direção a uma terra estranha, no qual as palavras “artesanal”, “gourmet” e expressões equivocadas e decalcadas de cartilhas de auto-ajuda, como “menos é mais”, ganharam um protagonismo irritante. E isso numa época em que milhões de pessoas passam fome mundo afora, ainda é mais irritante. Prefiro ficar com programas como o da chef Rita Lobo, que parece cozinhar sem querer, tamanho seu talento. Ela tem ideias interessantes, que não dão à palavra “sustentabilidade” uma conotação que desperte fúria assassina. Ela realmente deseja que o espectador de seu programa Cozinha Prática, cozinhe em casa, com os amigos, com a família. E que possa se alimentar melhor, evitando alimentos processados e industrializados. Recentemente, Rita ganhou um espaço diário na grade de programação do GNT, na qual apresenta seu programa sempre com temáticas legais e variadas.

Não ignoro que a chef argentina Paola Carosella é uma mulher preocupada com estas questões e que tem um trabalho importante sendo desenvolvido. Certamente deseja que mais e mais pessoas comam ingredientes naturais e de qualidade. Ela é a única jurada do Masterchef a exibir algum sentimento pelos participantes, mostrando que a cozinha é lugar de harmonia, não de competição. Abrir mão disso é deixar que uma lógica predatória e neoliberal invada um dos espaços mais sagrados da vida humana e que interfira diretamente na elaboração de algo essencial para as nossas vidas: a comida. Cozinhar é algo próximo do sagrado, é uma pequena alquimia diária, a partir da qual damos e recebemos afeto, carinho e gratidão. Todo o resto é estranho a este ritual.

Não digo com este texto que deixarei de ver o programa. Ele é bem produzido e ainda tem seu charme, mas cada vez ele é mais uma atração televisiva fantasiosa e distante da realidade que entendo como ideal e pela qual procuro fazer algo, a de cozinhar para minha família e cumprir um papel nesta arte que é a convivência. Tem quem goste, tem quem pense que comida tem a ver com o programa, mas, afirmo: não tem.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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