Sonic Youth, muito mais do que coadjuvantes do grunge

 

 

 

Não faltam antecedentes ao grunge. Entre os mais diretos, estão Pixies e Sonic Youth. A Pixies se autodestruiu em 1992 após quatro álbuns. Não estava mais viva, portanto, quando o grunge chegou ao auge. Com a Sonic Youth, a história é outra.

 

Primeiro, porque a relação com bandas associadas ao grunge foi mais íntima. Especialmente no caso da Nirvana, que já no final de 1990 abriu shows do quarteto nova-iorquino. A banda de Cobain acabou optando pela mesma gravadora da Sonic Youth, compartilhando também a companhia que empresariava sua carreira.

 

Segundo, a Sonic Youth já era uma veterana. Formada em 1981, a banda lançara, até 1988, cinco LPs e mais alguns EPs. Desde 1985, contava com a mesma formação: naquele ano, o baterista Steve Shelley veio se juntar ao núcleo original: os guitarristas Thurston Moore e Lee Ranaldo e a baixista Kim Gordon. A banda seguiria junta até 2011 e a pergunta era o que aconteceria após ser contratada por uma major.

 

 

 

A gravadora, no caso, era a Geffen, mais precisamente uma subsidiária sua, a DGC. A Sonic Youth estreou na DGC com Goo, álbum de 1990. Com produção atribulada (Daniel Lanois foi cogitado, Nick Sansano foi quem assumiu, mas o trabalho foi concluído por Ron Saint Germain), o grande temor da banda, como nos conta David Browne em seu livro, era não parecer como um Poison ou um Motley Crue.

 

O álbum seguinte foi gravado sob os holofotes ligados pelo estouro do grunge. A produção e a mixagem foram entregues aos mesmos nomes registrados em Nevermind: Butch Vig e Andy Wallace, respectivamente. Butch Vig recebeu uma fita com sons que o deixaram desorientado. Ele teve uma conversa com a banda e a remessa seguinte, já no final de 1991, trazia músicas mais domesticadas. Em fevereiro de 1992, Vig esteve em Nova York para as gravações do álbum, que ocorreram no Magic Shop, mesmo estúdio onde David Bowie registraria Blackstar.

 

Era outra agora a grande dúvida: veríamos a banda de sons estranhos, conhecida por álbuns quase conceituais, surfar a onda grunge?

 

A faixa inicial de Dirty, da leva de composições mais recentes, parecia indicar que sim: apesar das guitarras dissonantes ao fundo, “100%” se sustenta no baixo e bateria. De estrutura convencional, parece uma mistura de Beatles e Nirvana. Outra música com configuração mais linear é “Youth Against Fascism”. Quando as guitarras engrossam o baixo, a Sonic Youth soa adaptada ao espírito da época.

 

“Wish Fullfiment” oscila entre uma guitarra delicada e um refrão feroz, no qual se mantém a coesão dos instrumentos. Adota um formato na linha do soft-loud característico do grunge. É a única faixa cantada por Lee Ranaldo e uma das quatro em que Kim Gordon também toca guitarra, uma novidade trazida por Dirty.

 

A linearidade pode se aplicar também a “Nic Fit” (a única faixa que não passou pelas mãos de Butch Vig), versão bem próxima da original composta pela The Untouchables, banda do irmão de Ian Mackay, guitarrista da Fugazi que contribui com uma participação em “Youth Against Fascism”. No caso de “Nic Fit”, a Sonic Youth soa punk e hardcore como poucas vezes soou antes e depois.

 

Mas a maioria das 15 faixas de Dirty não segue a cartilha da conveniência, nem bebe nas mesmas fontes de que se alimenta o grunge ou se aproxima do hard-rock com que às vezes se confundia o estilo. Músicas com variações extremas, estruturas tortuosas e dissonâncias atrozes desfilam pelo álbum.

 

Coincidência ou não, entre essas músicas estão todas as que são cantadas por Kim Gordon: raivosamente em “Swimsuit Issue” e “Drunken Butterfly”, vomitando na apoteose de “Shoot”, cuspindo angelicamente em “Orange Rolls, Angel’s Spit”, languidamente em “On the Strip” e “JC”, jocosamente em “Crème Brûlée”.

 

As outras duas faixas em que a banda exercita o que podemos chamar de experimentalismo organizado ou de rock progressivo caótico são “Theresa’s Sound-World” e “Chapel Hill”. Enquanto a última tem uma levada mais convencional, derrapando em um excurso acelerado, a primeira parece uma sinfonia ensandecida, um convite a uma imersão acachapante.

 

São basicamente as guitarras de Moore e Ranaldo, em suas afinações alternativas e contrapontos engenhosos que moldam o relevo acidentado da música da banda, oscilando entre ataques sonoros e depressões acústicas. Mas o baixo de Gordon é literalmente fundamental. E não se pode depreciar o trabalho de Shelley, combinando sutileza e fúria, em composições que trazem algo dos anos 80 para os 90.

 

“Sugar Kane” e “Purr”, que já podem ser ouvidas em shows do final de 1991, juntam os dois lados de Dirty: flertam com uma coesão pop, mas com seções que recusam sua linearidade. Felinamente, como convém no caso da segunda; ferozmente, ameaçando arrebentar tudo no caso da primeira. “Purr” recebeu uma versão mais acústica para um programa da BBC. Já “Sugar Kane” foi destacada como single, como ocorreu também com “100%”, “Youth Against Fascism” e “Drunken Butterfly”.

 

Divulgada como lado B de “100%”, “Genetic” foi preterida diante de outras que constam no álbum. Uma votação levou a esse destino, o que deixou contrariado Lee Ranaldo, o cantor da música. Política era dimensão importante em uma banda com três vocalistas, quatro compositores e um casal…

 

Aliás, política é um componente central de Dirty. Ela se anuncia no título de “Youth Against the Fascism”, cuja letra foi transcrita na capa do EP.  Uma sucessão de versos curtos ataca a estupidez da Ku Klux Klan e suas mentiras cristãs, mas chegam também ao então presidente (George Bush) e seus jogos de guerra.

 

Em linha semelhante, a política aparece em “Chapel Hill”. O título da música refere-se à cidade onde ficava a livraria da Internationalist Books, um experimento anticapitalista. Em 1991, o fundador da livraria foi assassinado, por razões até hoje não esclarecidas. A letra provoca: “Back in the days when the battles raged / And we thought it was nothing / A bookstore man meets the CIA”.

 

Há outra morte lamentada em Dirty, a de Joe Cole, roadie da Black Flag e amigo da banda. Ele foi baleado em sua casa em Los Angeles durante um assalto. Moore canta sobre ele em “100%” e Gordon faz o mesmo em “JC”. Apesar das notas fúnebres, tristeza não é um sentimento que transpire do álbum.

 

A política emerge ainda em outra chave, a que se relaciona com gênero. Dirty consolida Kim Gordon como uma referência de atitudes e de posicionamentos feministas. Sua inspiração percorre desde o movimento das riot grrls até tendências da moda. Aliás, Gordon lançaria logo depois sua própria marca de roupas, ao mesmo tempo que dividiria sua dedicação à banda com o cuidado da filha que teve com Moore.

 

“Shoot” tem como primeira pessoa em sua narrativa uma mulher abusada por seu parceiro (ou cafetão, segundo o livro de Browne): “Since we’ve been together you’ve been good to me / You only hit me when you wanna be pleased”. Após o sofrimento, vem a reação, com os tiros que dão título à canção.

 

“Orange Rolls, Angel’s Spite” apresenta um jogo virado desde o início. Uma mulher está no comando e soa ameaçadora: “Don’t you even try / Oh no if you could / You would surely die”.

 

“Swimsuit Issue” – cuja letra Gordon transcreve em seu livro, A Garota da Banda – é incisiva ao remeter a um caso real de assédio. Detalhe: ele ocorrera dentro da gravadora que contratava a banda! Outra referência a assédio aparece em “Youth Against Fascism”, quando a letra cita Anita Hill, então em litígio por conta de um caso de abuso também em ambiente de trabalho.

 

Embora o videoclipe de “Youth Against Fascism” tenha, claro, referências políticas, o mais provocativo dos vídeos de Dirty é o de “Sugar Kane”. Ambientado em um desfile de moda, termina com uma garota saindo das ruas para as passarelas, onde aparece sem roupa. A banda parece estar fazendo a trilha do desfile, ao mesmo tempo como parte e como crítica do que vemos.

 

Algo que acompanha o trabalho da Sonic Youth é a junção entre o alternativo e o pop. Dirty só é o sétimo álbum de sua carreira se descontarmos The Whitey Album, lançado em 1988. A banda mudou seu nome para Ciccone Youth, uma referência ao sobrenome da cantora mais conhecida como Madonna.

 

“Sugar Kane” é uma homenagem a Marylin Monroe – mais especificamente, à personagem que ela encena em Quanto Mais Quente, Melhor. Os versos de “Drunken Butterfly” juntam nomes de músicas ou trechos de letras da Heart, banda pop-hard-rock de Seattle.

 

Referências pop conviviam com as interações da banda com arte conceitual e vanguardista – especialmente artes plásticas e cinema. Cada uma das faixas de Goo rendeu videoclipes dirigidos pela própria banda ou por diferentes cineastas underground – um deles, Todd Haynes, ganharia renome. “100%”, por sua vez, revelou Spike Jonze, que trabalhou ao lado de uma colaboradora regular do quarteto, Tamra Davis.

 

As capas de álbuns da Sonic Youth são outra vitrine para esse mundo da arte. No caso de Dirty, o bonequinho de tecido é uma obra de Mike Kelley, sobre a qual comenta Gordon em seu livro: “Mike os chamava de ‘Presentes da Culpa’, [pois] as muitas horas que se leva para fazer alguma coisa em crochê fazem com que a pessoa que ganha essa coisa se sinta na obrigação de valorizá-la, e é tomada pela culpa quando se livra daquilo”.

 

O encarte do álbum traz outras fotos de bonequinhos, a um só tempo amigáveis e perturbadores. Em parte da turnê do álbum, os bonequinhos eram vendidos ao público, com um buttom inscrito “me abrace, sou sujo”.

 

O começo dos anos 90 talvez tenham sido um dos únicos momentos em que grandes gravadoras, como a Geffen, tenham apostado em sujeiras como Dirty. Em vinil, ele saiu como um LP duplo. A estrutura de show da Sonic Youth nunca fora tão grande, com uma parada até no Havaí. A recompensa ficou abaixo das expectativas, se o critérios forem as paradas de sucessos ou índices de vendas.

 

Por outro lado, a banda se consolidou como referência de música pop alternativa. Lançado depois do estouro do grunge, o documentário 1991 The Year Punk Broke mostra a Sonic Youth liderando uma turnê com Nirvana e Dinosaur Jr. então como coadjuvantes. “Orange Rolls, Angel’s Spit” e “Chapel Hill” podem ser checadas em suas primeiras execuções.

 

Pouco antes dessa rápida turnê europeia, a banda havia excursionado abrindo os shows de Neil Young. A experiência negativa, com o público e no backstage, deve ter contado para a recusa do convite vindo da U2 para dividir palcos, isso já depois de Dirty.

 

A Sonic Youth preferiu fazer o papel de madrinha de novas bandas, sugerindo nomes para a Geffen e chamando para abrir seus shows em 1992 nomes como Pavement e The Jon Spencer Blues Explosion. Em 1991, Kim Gordon já havia ajudado a produzir o álbum de estreia da Hole. Quando Beck aceitou o convite da Geffen como gravadora em 1993, Gordon e seus companheiros funcionaram como credenciais positivas.

 

Tudo isso apenas confirma a singularidade histórica da Sonic Youth: ela atravessa os anos 80 depois de surgir como parte do movimento no wave nova-iorquino; ao mesmo tempo em que aparece em um dos cenários mais efervescentes da música pop nos anos 90, contribui para aproximações entre o “rock de guitarra” e o rap. Sua posição de aparente coadjuvante não pode ofuscar seu real protagonismo.

 

Como sabemos, a trajetória da Sonic Youth continuaria por mais quase 20 anos, com vários momentos que merecem nossa escuta. Musicalmente, arrisco dizer que Dirty é o ponto mais alto dessa trajetória. Destacado por sua associação com o grunge, (nos) atira para muito mais além.

 

Observação: a versão de Dirty disponível nas plataformas de streaming é a divulgada em 2003. Ela contém todas as faixas que acompanham os EPs e também versões demo de algumas músicas que foram registradas no final de 1991.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *