A bola quicando diante das instituições

 

 

Um filme legalzinho dos anos 1990 é “A Rocha”. “Legalzinho” no sentido pipocão explosivo do termo, até porque é uma dessas produções com roteiro fraco, mas com um elenco bacana. Por exemplo, tem Ed Harris e Sean Connery com antagonistas primordiais e tem um Nicolas Cage em atuação de nível médio, sem comprometer muito. A trama é audaciosa e mirabolante: um general veterano do Vietnã (Harris) decide tomar a Ilha de Alcatraz, na Baía de São Francisco, e ameaça disparar armas químicas contra a cidade se suas exigências de pensão e reconhecimento de atos de heroísmo de militares por parte do governo americano não forem cumpridas. Para ajudá-lo, ele conta com a ajuda de alguns soldados renegados e dois oficiais que serviram junto com ele em combate. Connery é um ex-detento do lugar, um ex-agente secreto britânico com um passado misterioso e Cage é um químico do FBI, chamado para dar conta do potencial das armas químicas, que é devastador.

 

 

Em meio a explosões e sequências inacreditáveis, “A Rocha” é, como já disse, bem legal. Em algum ponto do filme, mais pro final – ALERTA DE SPOILER – o general de mil estrelas vê que seu plano não deu certo. E lá, diante da iminência de ser derrotado, ele dá sinais de que a aventura acabou. Um dos oficiais renegados não se conforma o general diz algo como:

 

 

– Nossa ação foi baseada numa ameaça. Num blefe. Eles não pagaram pra ver, logo, perdemos. Ou você acha que deveríamos lançar armas químicas contra cidadãos americanos?

 

Tem início uma briga feroz porque, na verdade, o tal mercenário renegado quer mesmo o dinheiro e o roteiro dá um jeito de salvar a pele do general, que morre tentando defender, em última instância, seu ato, num sacrifício típico da tal jornada do herói.

 

Corta pra ontem, dia 07 de setembro de 2021.

 

Milhares de golpistas vestidos de verde e amarelo, usando símbolos da nação brasileira, foram às ruas, pedindo intervenção militar, destituição do ministro do STF Alexandre de Moraes, voto impresso, “faxina” nas instituições, fechamento do Congresso e outras pautas que são anti-democráticas por natureza, visto que estas mesmas instituições existem para garantir que a representação popular – o pilar da democracia enquanto regime de governo – exista. Ou seja, essas pessoas lá estavam para pedir que não fossem representadas. Davam ao “presidente” a carta branca que só os ditadores têm, para agir em seu nome, sem mais melindres, fazendo o que quiser. Nada de protesto contra inflação, corrupção, pandemia, desemprego, alta dos combustíveis ou pelo fato da população estar comendo pés de galinha, ossos de boi ou outras gambiarras inaceitáveis para um país rico como o Brasil, que produz e exposta alimentos para o mundo.

 

Só teve golpismo e antidemocracia.

 

À frente dessa gente, o “presidente”. Péssimo administrador, péssimo político, desde que assumiu o poder, ele só faz agitar o ambiente em seu próprio favor, disfarçando a sua inépcia com um show midiático que só depôs contra a imagem do país no exterior e fez, gradativamente, grande parte da população perder o apreço pelos símbolos nacionais. Eleito como uma “alternativa nova” para a política – imagem vendida pela mídia que o ajudou a chegar lá – ele sempre simbolizou o atraso institucional. Defensor da tortura, dos militares no poder, da divisão social, do ataque às diferenças. Disse frases horríveis sobre estupro, tortura, assassinato de opositores. Sempre foi o que é, um militar do baixo oficialato, expulso do Exército no fim dos anos 1980, que enveredou pela carreira política sem grandes pretensões. Deu no que deu.

 

Não cabe aqui falar o que todos sabemos, ou seja, que ele é péssimo em todos os sentidos. Cabe, sim, falar do que fez ontem, que foi a defesa mais assumida e escancarada do golpismo antidemocratico. Sob a alegação de perseguição por parte do STF, ele deu um ultimato ao ministro Alexandre de Moraes, que é o responsável pelas investigações sobre atos antidemocráticos e denúncias de fake news nas eleições de 2018: ou ele para, ou “haverá consequências”. Em Brasília, pela manhã, o tom foi menor do que em São Paulo, à tarde, quando ele chamou Moraes de “canalha” e disse, abertamente, que não irá mais acatar suas decisões processuais. Ou seja, colocou em rota de colisão os poderes Judiciário e Executivo, algo que não pode ocorrer numa democracia. Pode numa ditadura.

 

Sendo assim, o que isso significa? Que o “presidente” dobrou a aposta diante das instituições. Ele acredita que não será vítima de um processo de impeachment, que, o Legislativo – dominado pelo que chamam de Centrão – não será capaz de colocá-lo contra a parede, especialmente diante da enxurrada de recursos e cargos com os quais ele tem brindado estes parlamentares. Ele acredita que estes políticos comprarão sua bravata antidemocrática em nome de mais e mais dinheiro e favores. Se ele estiver certo, tudo o que vimos ontem, de faixas pedindo salvação do país em relação ao comunismo ao condenado fabrício queiroz sendo ovacionado e abraçado por bolsonaristas em Copacabana, passará incólume.

 

Está nas mãos dos parlamentares e dos integrantes do STF reagir diante da bravata ameaçadora que foi feita ontem. Como o general de “A Rocha”, mas, talvez, numa versão podre e mal acabada de suas intenções, o “presidente” brasileiro foi às ruas ontem para ameaçar o país, confirmar o achatamento dos mais pobres, defender o desemprego, ostentar os mortos pela pandemia, exaltar a inflação e glorificar a penúria da população. E, en passant, cagar e mijar na democracia.

 

Pensando bem, isso faz sentido, se lembrarmos quem ele sempre foi.

 

A bola está quicando diante das instituições brasileiras, com o gol escancarado. É só cutucar.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “A bola quicando diante das instituições

  • 8 de setembro de 2021 em 10:45
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    Texto ótimo. Parabéns!
    E lá se vão 199 anos dessa piada pronta: “dia da independência”.
    Mas cá entre nós, esse cabeça de ovo, hein? Alexandre Moraes, o homem que mandou bater e criancinha, afiançado pelo Alckmin e com vista grossa do professor Haddad. Deus me livre!
    Acho que desde Alexandre VI (o papa), qualquer um que tenha “alexandre” no nome não merece confiança.
    O capitãozinho continua na méRma: fazendo campanha , criando factoides e gerando memes engraçadíssimos.

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