As Refazendas de Gilberto Gil

 

 

Falar dos grandes artífices da cultura brasileira pode ser uma grande aventura. Ao nos debruçarmos sobre discografias tão prolíficas,  podemos cometer alguns deslizes ou injustiças que vão definir o que deve ou não ser ouvido. Podemos notar isso em grandes listas de melhores discos da música popular brasileira que, ao destacar algumas obras fundamentais, acabam por ofuscar alguns discos tão importantes quanto os já citados. Por exemplo, um Acabou Chorare (1972) dos Novos Baianos pode ser a porta de entrada para o Novos Baianos F.C. (1973) ou para o disco homônimo de 1974, mas nem sempre isso acontece. Muitos discos são esquecidos nas extensas discografias e nas infinitas possibilidades de nossa produção cultural.

 

 

Dito isso, me direciono para aparente contradição desse texto: a trilogia Re (1975-1979), mais especificamente ao disco Refazenda (1975).

 

Para entendermos a obra de Gil é imprescindível que passemos por essa sequência de discos, porém, não é suficiente. Sua obra comporta os mais variados temas e, sobretudo, sonoridades. Com uma discografia extensa e cheias de momentos apoteóticos, o compositor baiano expressa nessa trilogia a genealogia de sua musicalidade. Em Refazenda (1975), Gil encanta o público com canções que remetem a sua origem interiorana, buscando enaltecer uma das pedras fundamentais de sua musicalidade: o baião do mestre Luís Gonzaga. Com um de seus discípulos, Dominguinhos, ele comete uma de suas gravações mais clássicas, Lamento Sertanejo. Dentre as grandes canções deste disco, podemos encontrar Pai e Mãe, um letra linda que rompe com os paradigmas da masculinidade já naquela época. Outros destaques vão para Tenho Sede, Essa é Pra Tocar No Rádio e Jeca Total.

 

Bom, é fato que muito já foi dito sobre essa obra. Mas, aqui, vou tentar desatar esse nó contraditório do texto. A trilogia Re é muito mais do que pontos altos da obra de Gil. Ela funciona fundamentalmente como setas apontando para tudo aquilo que ele produziu e produziria a partir disso. Em Refavela (1977), o autor se compromete a desvendar as suas raízes e conexões com as matrizes culturais de alguns países da costa oeste africana, como a Nigéria, uma vez que foi lá que teve um profundo intercâmbio cultural com artistas fundamentais como Fela Kuti. Foi lá também que reparou as similaridades das favelas de ambos os lugares. Nesse sentido, Gil se volta para uma musicalidade mais rítmica e suingada para compor a estética desse álbum. Essa experiência viria a se manifestar de diversas formas em sua obra, como em Nos Barracos da Cidade do disco Dia Dorim Noite Neon (1985) ou em momentos célebres de intersecção com o hip hop em Tropicália 2 (1993), como em Haiti, com Caetano Veloso. Essa busca por essas raízes que de alguma forma se relacionasse com África o levou também a incursões pelo reggae, tendo como ponto de maior destaque o sucesso absoluto de Vamos Fugir do disco Raça Humana (1984). Futuramente, já nos anos 2000, isso se refletiria em um tributo à música jamaicana, o Kaya n’Gan Daya (2002).

 

Já no Realce (1979), Gil se debruça sobre a música contemporânea. Sua estreia na Warner, é também seu ponto de virada para um artista de grandes vendagens. Isso se dá, sobretudo, por sua capacidade de olhar para o presente e caminhar para o futuro. Ele já teria feito incursões pela contemporaneidade em sua obra, como na psicodelia do final dos 60 e na música londrina dos 70, chegando até a gravar o clássico da banda Blind Faith, Can’t Find My Way Home. No disco de 1979, podemos ouvir a sonoridade da disco music no melhor estilo Earth Wind & Fire. Essa faceta desaguaria nos anos 80 e seu flerte total com o rock brasileiro vigente na época e, até mesmo, na premonição do manguebeat de Parabolicamará (1992).

 

Mas é no Refazenda (1975) que mora o título deste texto. É aqui que Gil mostra a sua faceta mais recorrente. De seu disco de estreia de 1967, mais conhecido como Louvação, com letras ambientadas nas pequenas cidades do interior da Bahia, a Fé Na Festa (2010), que emula uma festa junina em seu sentido mais clássico e folclórico, ele nunca abandonou esse traço. Com as guitarras ferozes de Expresso 2222 (1972), Gil eletrifica a Banda de Pifanos de Caruaru. Até mesmo em outros momentos da trilogia Re, o Refazenda se faz presentes, como em No Norte da Saudade do Refavela, ou em Toda Menina Baiana do Realce. Transcorrendo esse sotaque na sonoridade pop dos anos 80, o ponto de parada fundamental em que encontramos o Refazenda novamente é no já citado Parabolicamará (1992). Fazendo presente a parabólica na lama do manifesto do manguebeat, evoca seu lado sertanejo em algumas das melodias mais belas e letras mais contundentes de sua carreira. Seguindo pelos 90, notas de refazenda aparecem no injustiçado Sol de Oslo (1998), com Oslodum e Onde o Xaxado Tá, ele evoca a Bahia até mesmo na Escandinávia. Chegando nos 2000, inaugura-se a sua era de tributos e releituras de sua obra. Seria incongruente com sua carreira se Gil não fizesse um tributo ao Luis Gonzaga e ao Baião. Eu Tu Eles (2000) aponta pro novo milênio com notas dos Gilberto Gil mais clássico. Eis aqui o Refazenda novamente. Aliás, a dupla Gonzaga e Teixeira assume a paternidade das expressões mais enraizadas de Gil. Por fim, Fé Na Festa (2010), aponta para a nova década com ares de refazenda.

 

Sejam quais forem os apontamentos feitos para elencar a discografia de Gilberto Gil, nada é mais fundamental do que entender a genealogia de sua obra. Luis Gonzaga, João Gilberto e a parabólica fincada em suas raízes a fim de dar respiros contemporâneos à sua obra, o torna um grande domador do Tempo Rei. Gil é contemporâneo em todas as épocas, de Cérebro Eletrônico (1969) até Pela Internet (1997), ele se coloca como um grande artífice poético das novidades. Além disso, não passa pela sua obra sequer a possibilidade de abandonar as suas raízes. Gil é a síntese do passado, presente e futuro. De refazendas, refavelas, Gil realça em sua obra todas as matrizes e filiais do clássico e do contemporâneo.

 

Alexandre Gallego

Alexandre Gallego é Publicitário de formação e pós-graduando em Filosofia Política, Ética e Contemporaneidade. Paulista por acidente, mas brasileiro por amor. Ama as notas dissonantes nos acordes de um saudoso João e a filosofia de asfalto de um tal Dylan. Um jovem nessa década que busca em outras as respostas para o agora.

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