“Solução de Dois Estados” e a verdade que a gente não vê
Sempre que um ano chega ao fim penso em como sou péssima com resoluções, que sempre largo entre os meses para depois me arrepender. Até que veio 2020 e eu nem me lembro do que prometi lá em janeiro antes do apocalipse, mas pelo menos consegui manter meu compromisso de ler mais autores e autoras nacionais.
Se existe gente melhor para dar uns sacodes na nossa alienação eu desconheço.
“Solução de dois estados”, do autor porto-alegrense Michel Laub é um desses livros que incomodam por sua verossimilhança. Nele conhecemos os irmãos Raquel, artista performática e Alexandre, empresário do ramo fitness enquanto eles são entrevistados por uma cineasta alemã para um documentário sobre a barbárie brasileira.
Em fevereiro de 2018, durante um evento em São Paulo, Raquel é espancada em frente a 600 pessoas, que como ela ressalta desde as primeiras páginas, não fizeram nada para ajudar. Junto ao choque de nos apresentar as sequelas físicas e psicológicas da agressão Laub não nos poupa do que nos espera: Alexandre e Raquel se odeiam.
Filhos de uma família devastada pelo confisco do plano Collor eles têm em si a raiva construída aos poucos até se agigantar. Alexandre não perdoa a irmã por ter ido estudar arte na Europa em meio ao desastre financeiro do pai. Cada referência à Raquel é um desfile de ressentimento:
“Pergunta se a minha irmã tem ideia de como ficou a casa nos anos seguintes, é fácil falar quando o outro é que enfiou o braço na merda “
Raquel por sua vez foi vítima de bullying por causa do seu peso e carrega do sofrimento a mágoa que impulsiona o seu trabalho. O mais recente é uma sequência de vídeos pornográficos em que ela apanha de diferentes homens e que tem o título de Vaca Mocha, o apelido que lhe deram na época de escola.
“O corpo objetificado pode ser um grito de combate à cultura que o objetifica”
O que Raquel usa como denúncia para Alexandre, a personificação do homem que se fez sozinho, cria orgulhosa do neoliberalismo brasileiro, nada mais é que prostituição, coisa de artista vagabundo, desperdício de dinheiro.
Aos olhos de Brenda, a cineasta, se descortinam anos de humilhação, soberba e conversas sem final feliz.
Os dias em Solução de dois estados antecedem a eleição de 2018, o ano em que bandido bom é bandido morto deixou de ser um pensamento envergonhado. Alexandre não demonstra pena dos ferimentos de Raquel, do risco de morte que a própria irmã correu:
“O tratamento que você diz é levar uma surra? Eu não dei surra em ninguém “
Para ele que se vê como o grande salvador dos necessitados e perdidos que frequentam suas academias e a ligação que elas mantêm com a igreja evangélica, Raquel, degenerada, a ladra das economias da família não merece nada mais do que sua vergonha e ódio, sempre ele:
“A minha irmã é uma vaca prostituta de quarenta e seis anos. Ponto. Ele nem sabe mais pensar de outro jeito”
Não há em Solução de dois estados personagens gostáveis. Alexandre e Raquel são egocêntricos, violentos e volta e meia coagem a entrevistadora com indignações seletivas de pessoas a existir justificando a falta de civilidade de suas ações e neutralizando o horror, o que faz do livro um instrumento a nossa disposição se quisermos entender grande parte do processo que tem nos levado em direção à uma democracia constantemente ameaçada.
Sabem a imagem de um povo brasileiro cordial e compreensivo? Michel Laub joga na nossa cara e dá a ela a sua aparência verdadeira: a de uma falácia extremamente perigosa.
Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.
Essa quantidade enorme de violência e ressentimento, que verte da nossa sociedade, principalmente das bocas sem proteção, revelam facetas que sempre estiveram aquie hoje, libertam-se, sob a bênção do ressentido mor.