Seu Jorge x Angélica
Qual é o PIOR momento da música brasileira? Para fazer – e tentar responder – tal pergunta, seria preciso estabelecer alguns critérios. Não valeria, por exemplo, acusar algum artista com baixos recursos para fazer uma gravação de qualidade mínima, tampouco dizer que alguém cantando uma letra errada, seja em português ou no “embromation”, estaria credenciado para pleitear o posto. Teria que ser alguém com chance de fazer bem feito, com recursos, esclarecimento, perspectiva e possibilidade. E que, no entanto, apesar de tudo isso, conseguiu fazer o PIOR. O absolutamente pior, que não cabe recurso. E olhando para trás é possível perceber que Seu Jorge e Angélica se credenciam com impressionante força para a disputa do posto de arquiteto do maior horror sonoro feito por aqui. Vamos ver isso.
Angélica é, ela mesma, a esposa do Luciano Huck. Uma jovem senhora responsável, respeitável, à prova de adjetivos mundanos. Loura, linda, à prova de falhas, mãe de família, apresentadora de TV e tal. Porém, todos sabem, ela tem uma … carreira musical. Sim, no passado, Angélica foi a concorrente mais jovem da Xuxa no ofício de tratar crianças como adultos e sexualizá-las ao máximo. Fez isso por uma geração inteira e ditou um padrão de conduta e atuação que gerou clones. Angélica era um desses subprodutos e, como sua matriz, precisou cedo enveredar pela música. Seu primeiro hit foi uma versão em português de “Joe Le Taxi”, sucesso da cantora francesa, então adolescente, Vanessa Paradis. Com Angélica veio “Vou de Taxi”, com arranjo praticamente igual ao original e uma letra que tinha o arrojado verso “no chuveiro, foi só me tocar”. Ainda que seja apenas uma canção pop, não dá pra falar mal desta gravação, que é eficiente.
O mesmo não se pode dizer de … “Bye Que Bye Bye Bye”, uma versão que a lourinha cantou em seu segundo disco, de 1990. A canção original foi gravada no distante ano de 1967, por … The Doors. Sim, ela mesma, “Light My Fire”. Se o registro da banda californiana é um dos maiores clássicos do rock, não dá pra elogiar minimamente o que Angélica fez com sua “releitura”. Sabemos que o terreno das versões é pantanoso e pode conter monstros terríveis, mas o que foi feito com “Light My Fire” deveria ser proibido por alguma lei internacional, algo que levasse os responsáveis para um julgamento na Corte Internacional de Haia ou algo assim. E quem assina essa versão é Claudio Rabello, que tem uma folha extensa de “serviços prestados” na arte de verter para o português alguma obra que venha de fora. O problema é que, enquanto o original de Jim Morrison é sobre sexo, redenção existencial e realização em níveis que vão além da consciência humana, com direito a solos inspiradíssimos de Ray Manzarek e Robbie Krieger, Fontana, que transitou no ambiente musical/televisivo dos anos 1980/90, é um desses arquitetos invisíveis do desnorteio absoluto da música e de sua compreensão. Logo, nada restou do original, que foi soterrado por um arranjo meio lambadeiro, meio eletrônico de camelódromo, irremediavelmente datado. Vejam a letra de “Bye Que Bye…”
Os dias passam, um a um
E espalham armadilhas fatais
Por isso a vida não é comum
Você pensa que me tem e não tem mais
Baby, bye que bye bye bye
Baby, bye que bye bye bye
Nunca é tarde demais,
bye bye
Pra quem ficou de zum zum zum
Não viu o destino de tocaia
Quis muito e não ganhou nenhum
Nadou, nadou e morreu na praia
Baby, bye que bye bye bye
Baby, bye que bye bye bye
Nunca é tarde demais, bye bye
E como tudo chega ao fim
O tempo vai e não volta atrás
Eu sei que você gosta de mim
E eu gosto de você
mas não dá mais
Baby, bye que bye bye bye
Baby, bye que bye bye
Bye
Nunca é tarde demais, bye bye
O “come on baby, light my fire” virou “baby, bye que bye bye bye”, que era um bordão que Angélica usava para se despedir da audiência ou mesmo para pedir a entrada dos comerciais. Ela também fez um estrago bastante significativo em “Linger”, hit noventistas dos irlandeses do Cranberries, que, nas mãos malignas de Dudu Falcão, transformou-se em “Se A Gente Se Entender”. A canção abria o décimo-terceiro (!!!!) disco de Angélica e se tornou um … hit.
Do outro lado do ringue está ele, Seu Jorge. De um início simpático no Teatro da Uerj dos anos 1990, passando pelo Farofa Carioca, Seu Jorge enveredou com rapidez numa carreira solo que a mídia enxergou como uma alternativa moderna e simpática ao vácuo de artistas negros e descolados, não necessariamente engajados, na música nacional. E ele se aninhou neste espaço e lá está, desde então. Ao longo deste tempo, mais de 20 anos, Jorge foi responsável por dois verdadeiros atentados ao bom gosto/bom senso. Quando registrou o álbum “Ana e Jorge”, com a não menos destruidora Ana Carolina e, em seu momento máximo, o disco “Aquatic Sessions”, no qual, como se fosse um vilão de livro de George Orwell ou similar, ele foi apagando o significado de clássicos imorredouros de David Bowie. Sabemos que, antes dele, o grupo gaúcho Nenhum de Nós já havia feito um estrago considerável em “Starman”, que, de um alienígena que chega à Terra para viver o rock com os potenciais fãs, transformou-se em “Astronauta de Mármore”, que, já no título, mostra a incompreensão total da letra original.
Jorge resolveu REGRAVAR A VERSÃO DO NENHUM DE NÓS e, além dela, de outros doze clássicos de Bowie. De “Life On Mars?” a “Suffragette City”. De “Five Years” a “Ziggy Stardust”. E fez tudo isso com … letras em português absolutamente desvinculadas dos originais, em meio a arranjos voz/violão da pior espécie. Alguns exemplos? Em “Rebel Rebel” temos “ei, baby, seu cabelo é legal/moda na gringa é feliz natal”. Em “Life On Mars?” temos “muitas vezes o coração não consegue compreender/o que a mente não faz questão/nem tem forças pra obedecer”. Em “Ziggy Stardust”, Jorge se sai com “eu não sei pintar, não vi o seu filme, eu não sei pintar, não bebo em pé”. “Changes”, uma espécie de hino bowieano, surge com “não vou lamentar, o que passou passou, vou embora, meu tempo acabou”. São versões de alguém que odeia a obra de Bowie.
Por conta de cavalheirismo, gentileza, alinhamento planetário, aquecimento global, ironia ou confirmação do fim do mundo, o próprio David saudou o álbum e, meio que deu o seu aval para a empreitada. Agora, 14 anos depois deste lançamento nefasto, Seu Jorge anunciou uma live para o dia 15 de agosto, na qual, vestido como na capa do disco, emulando o personagem do filme “A Vida Aquática de Steve Zissou”, que inspirou tudo, ele promete reeditar o repertório deste … álbum.
Portanto, gente, apresento a vocês as opções para autor da pior tragédia da música brasileira em todos os tempos temporais. Escolham ou, pelo menos, passem longe, muito longe deste material aqui. Para seu próprio bem.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
CEEEEEEL! Trouxe para ti um terceiro contendor para caso um dos dois candidatos a se digladiarem no ringue não possam lutar por algum motivo banal: Roberto Justus com seu disco de covers!! Ele pode concorrer?
Simplesmente adoro e me esbaldo de rir com suas demolições espirituosas dessas bombas napalm – muito melhor do que chorar por conhecer a existência de tais atrocidades.
Abraço!
Rapaz, o disco do Justus já está numa categoria de armas de destruição em massa.