O prato e o talher de Moreno Veloso

 

 

Sim, quem está nas redes sociais – é quase todo mundo, né? – viu a Rolling Stone Brasil e a Folha de São Paulo comentarem sobre o uso de um prato e um talher por Moreno Veloso na live de seu pai, Caetano, com a intenção de obter uma sonoridade percussiva especial. O comentário do sites da revista e do jornal classificaram a atitude de “alívio cômico”, uma vez que Moreno teria disposto dos utensílios “por falta de um instrumento”.

 

Tal afirmação dá conta de um triste despreparo/desconhecimento sobre o único assunto que o jornalismo musical deveria falar: música. É mais um desdobramento da inserção de gente estranha ao ramo, gente que não tem a noção para entender, por exemplo, que prato, talher e outros elementos “estranhos” são – e devem – ser utilizados. Você não precisa colecionar discos do Hermeto Pascoal para isso, mas precisa – PRECISA – entender do que está falando. Música é coisa séria, por mais que te digam e pareça que tudo é número, clique, mercado, tendência, música é audição, acúmulo de conhecimento, percepção, entendimento e criação de um repertório que vai dar ao jornalista a capacidade de se expressar. Do contrário, gente, não dá.

 

É preciso, por exemplo, saber onde começaram as coisas. De onde vem o pai do Moreno. Saber que a carreira de Caetano vai além do “Transa” e do “Cê”, que, por sua vez, não é um disco em que o velho baiano “emula Pixies”. É preciso saber que os Novos Baianos não são, apenas, o “Acabou Chorare”. Que o melhor disco do Tim Maia não é, justamente, o que traz o grande Tião como um maluco religioso, mas um dos que o retrata como um sofredor dos assuntos do coração. É preciso ouvir, gente. É preciso ler. Escolher as fontes.

 

Certa vez, cobrindo para a própria Rolling Stone Brasil, eu vi o show do Gilberto Gil e do Stevie Wonder no Imperator, no Rio. Plateia muito seleta, apenas convidados e a imprensa. Naturalmente fui anotando as canções que Gil, depois Stevie, iam apresentando. Qual não foi minha surpresa quando a colega que estava ao lado me pediu para copiar o setlist que eu ia registrando. A partir daí, a cada novo registro, ela me perguntava: “e essa? Qual é?”. Nada contra ajudar ninguém, mas, caramba, Stevie Wonder não vem ao Brasil toda hora, certo? Que tal pesquisar, se preparar para o show? Mas não. A culpa nem é da menina, mas da editoria, da pauta, de entender o show como um acontecimento e não como um espetáculo de … música.

 

Por mais que te digam o contrário, música é coisa séria. Precisa de preparo, gente. Pra fazer e pra escrever sobre. Música não é lifestyle, não é trendsetter, não é nada dessas verborragias que te empurram por aí. Música é audição, percepção. Exige disposição para ser compreendida num nível mínimo para te credenciar para escrever a respeito. Estou desde 1996 procurando desenvolver minha escrita e minha percepção sobre este assunto tão complexo.

 

Ver alguém com privilégios e lugar de fala dizer o que foi dito sobre o prato e o talher do Moreno Veloso é ter a certeza de que o jornalismo musical hegemônico está morto e enterrado.

 

O que fazer para melhorar? Remuneração melhor, mudança de paradigmas, resgate da função formadora de opinião que a imprensa tem como uma de suas principais virtudes? Tudo isso. E mais.

 

Ainda bem que existem os sites alternativos.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “O prato e o talher de Moreno Veloso

  • 11 de agosto de 2020 em 17:08
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    Você sempre manda bem, podia ter dado um espacinho pra explicar que prato, faca, colher de pau, frigideira são usados há tempos no samba. Prato e talher é coisa da tradição do samba da Bahia e aqui no errejotinha . Pô, já faz um tempão que moreno usa prato e dança aquele sambinha de pé junto baiano.
    Enfim, que merda, a internet acabou com a relevância da música!

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