Rock In Rio – Resumão Dias 3 e 4
Sábado e domingo, 3 e 4 de setembro, respectivamente, foram dois dias que fugiram à compreensão daquela gente chata, que gosta de falar “onde está o rock no Rock In Rio?!”. Certamente você conhece este tipo. Gente que nunca percebeu que o festival sempre deu espaço para artistas de outros gêneros em todas as suas edições. Pergunte para este xarope o que ele diz das presenças de Ivan Lins e Alceu Valença no primeiro Rock In Rio. Ou de tanta gente bacana ao longo do tempo, completa ou parcialmente dissociada do rock. Pois bem. Superado este pequeno entrave, é bom dizer que as escalações de 3 e 4 de setembro ousaram na dissociação em relação ao rock, abrindo espaço para pop, rap, trap, eletrônico e, queiramos ou não, é preciso dar o braço a torcer para o caráter comercial que o Rock In Rio ostenta. O público é imenso e responde efusivamente aos artistas que aparecem, de Alok a Racionais MC. De Criolo a Demi Lovato. De Matuê a Justin Bieber. E, cá entre nós, o público destes estilos é bem menos chato que o “roqueiro clássico”, as vibrações e o astral dos shows é bem mais leve. Mas, enfim, questão de gosto.
Dia 3
O dia 3 foi marcado por um show bacana e dois shows sensacionais no Palco Sunset e apenas eles merecem destaque neste dia: As presenças de Xamã e sua turma e as apresentações de Criolo (com Mayra Andrade) e Racionais MC. Claro que não dá pra ignorar a passagem do DJ Alok pelo Palco Mundo, levando uma multidão a pular e dançar com suas mixagens pouco originais. Parecia uma demonstração de sincronia ou de luzes, na qual a música surgia como algo acessório, menos importante. De fato, nenhuma das pessoas presentes ali parecia se importar com a música, até mesmo porque Alok enfiava de Guns’n’Roses e Bon Jovi a um arsenal de beats e samples de literalmente tudo e todos. Eficiente e sintonizado com o público, precisamos admitir.
Mas foi no Sunset que a coisa realmente aconteceu. Xamã é um artista extremamente popular hoje em dia. Faz rap com pitadas de funk e outros estilos. Jason Fernandes, de Sepetiba, Rio de Janeiro, era vendedor, camelô e estudava Direito, em 2015. De lá para cá”, sua carreira, forjada nas batalhas de rap da periferia carioca, tornou-se uma realidade. Hits como “Flow do Vendedor de Amendoim” e “A Bela e a Fera” cresceram e se consolidaram junto a uma juventude urbana. Em 2019 ele apareceu no Palco Favela, no próprio Rock In Rio e fez tanto sucesso que voltou, três anos depois, devidamente “promovido”. Não é pra menos, uma olhada no perfil de Xamã no Spotify vai mostrar canções com mais de 200 milhões de audições, caso de “Malvadão 3”, que também participação de Gustah e Neo Beats.
Com muito mais singles que álbuns, Xamã tem feito incursões no universo do trap, como mostram as faixas de último disco “Zodíaco”, de 2020. No ano anterior, Xamã lançou “Iluminado”, um álbum com várias canções com títulos de filmes, das quais “Um Drink No Inferno” mantém a oscilação entre as personas “Malvadão” e “Romanticão” do artista, como ele disse em entrevista ao Multishow logo após o show. No palco, o homem tem a presença de bailarinos, coreografias e pirotecnias mil, mas tudo com uma coesão admirável para um artista “novo”. Na verdade, Xamã já vem cascudo pela ralação que vem empreendendo há anos. Merece o sucesso que tem.
As apresentações de Criolo e Racionais MCs foram antológicas. O rapper paulista, que lançou o ótimo álbum “Sobre Viver” neste ano, recebeu a presença da cantora caboverdiana Mayra Andrade. Aliás, no disco, os dois aparecem juntos em “Ogum, Ogum”, faixa que também interpretaram ao vivo, num momento bem bonito. De “Sobre Viver” ainda veio a maravilhosa “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais”. Mas Criolo passeou por seus outros trabalhos com desenvoltura. Deu espaço para as ótimas “Convoque Seu Buda” e “Esquiva Da Esgrima” e não hesitou em visitar os sucessos “Subirudoistiozin” e “Não Existe Amor Em SP”, ambas de “Nó Na Orelha”, que foi o disco que colocou o homem no mapa. Ao vivo, a banda de Criolo confere mais peso e ambiência jazzy para as canções, funcionando muito bem.
Mayra teve seu momento no palco e brindou com os presentes com uma interpretação impressionante de “Tan Kalakatan”, que foi executada no palco com uma ambiência trip hop belíssima, constituindo um dos momentos mais belos do dia.
Após Criolo deixar o Palco Sunset num clima de amor e bênçãos para o público, os Racionais MCs chegaram num trem da CPTU estilizado e, numa onda meio Warriors – Os Selvagens da Noite, levaram os presentes para um passeio pela periferia paulistana sem qualquer rede de proteção. Trazendo as origens do hip hop 011 à flor da pele, os Racionais desfilaram seu repertório clássico, com muita gente no palco, inclusive um sujeito vestido de palhaço que fazia uns passos e coreografias que lembravam muito o Coringa de Joaquin Phoenix. Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay demoliram as fronteiras entre denúncia e música, tornando tudo intrinsecamente ligado. A produção de palco foi excelente e realçou momentos como a execução de “Eu Sou 157”, “Jesus Chorou” e “Negro Drama”, na qual foram exibidos nomes e fotos de vários negros que foram mortos pela violência policial, incluindo aí a vereadora Marielle Franco.
Em “Mil Faces De Um Homem Leal (Marighella)”, o palco assumiu uma coloração eminentemente vermelha, com fotos e colagens sobre Carlos Marighella, morto pela ditadura civil militar em 1968. Com o público hipnotizado diante da força de sua interpretação, o Racionais MCs pode se dar ao luxo de deixar de lado sucessos como “Fim de Semana no Parque” e “Diario de um Detento”, sem qualquer dano ao show. “Vida Loka pt.1” com samples de “You Are My Love”, do Liverpool Express, foi cantada em coro, enquanto a belíssima “That’s My Way”, do disco solo de Edi Rock, “Contra Nós Ninguém Será” (2013), também impressionou pela força que ganhou ao vivo.
O festival ainda teria a presença de Post Malone no Palco Mundo, mas, depois da elevação de Criolo e da demolição dos Racionais, não havia mais espaço para nada.
Dia 4
O domingo foi um dia com atrações menos interessantes que a véspera, com alguns destaques negativos e duas apresentações muito bacanas. A primeira foi do trapper Matuê, no Palco Sunset, enchendo o espaço com sua música eletrônica e trazendo o público nas mãos. A outra, grata surpresa, foi a presença da cantora americana Demi Lovato no Palco Mundo. Além delas, Gilberto Gil e sua família celebraram os 80 anos do ícone baiano. E ficamos por aqui em termos de shows bons, minha gente.
Muita gente esperava apresentações melhores de Iza e Emicida, mas eles não entregaram espetáculos memoráveis. Iza, dona de uma das mais intensas presenças e de uma voz muito potente, não convenceu no Palco Mundo. Vindo após um show esquecível dos mineiros do Jota Quest, a cantora carioca tinha tudo para subir de prateleira no showbiz nacional, mas ainda ostenta um status de promessa. Com uma cenografia sofrível e uma troca constante de péssimos figurinos, além de um palco superpovoado, Iza naufragou nas exigências procedimentais de uma cantora “grande” hoje em dia. Como sua área de atuação é a música negra moderna, ela pareceu direcionada a trafegar nos caminhos de divas como Beyonce e Rihanna, que, praticamente, ditaram as regras desse jogo. Com pouca experiência e um repertório pouco consistente, Iza não deu nem pra saída e decepcionou quem já havia visto apresentações anteriores dela no próprio Rock In Rio, quando, em 2019, teve um show dividido com a cantora Alcione e, em 2017, apareceu participando do show de Cee-Lo Green.
Muito se esperava também da cantora gaúcha Luisa Sonza, mas a apresentação dela foi bem semelhante à de Iza. Foi possível ver algum potencial, mas o repertório, a presença de palco e o próprio nervosismo de Luisa comprometeram tudo. A participação de Marina Sena não contribuiu muito e o show ficou bem aquém do que poderia ser. Luisa tem influências que oscilam entre cantoras como Miley Cyrus, Kelly Key e Anitta, fazendo uma tradução brasileira do grande pop mundial, acrescentando pitadas de funk nacional e elementos eletrônicos oriundos dos bailes de subúrbio pelo Brasil afora. Funciona e faz sentido nos singles. A moça é fluente nesta mistura, mas não tem exatamente uma personalidade artística muito forte, como tem, por exemplo, a própria Iza. Quando chega a hora de mostrar isso num grande palco, fica à mostra esta fragilidade. Luisa arregimentou uma boa banda, cantou seus sucessos e até fez uma bela homenagem à Legião Urbana, cantando “1 de Julho”, que ela deve ter conhecido por Cássia Eller. Tanto Marina, quanto Luisa e Iza ainda podem render muito mais, tenho certeza.
Antes, porém, o Palco Sunset havia visto uma apresentação entusiasmante: o trapper Matuê . Assim como Xamã, Matuê é uma estrela entre os jovens urbanos do país. Uma olhada em sua agenda de shows mostra que ele estará em lugares como Vitória, Salvador, Belo Horizonte, Petrolina e São Paulo em menos de uma semana, entre 24 de setembro e 1 de outubro próximos. Batalhador e cheio de gás, o sujeito subiu ao Palco Sunset com uma galera andando de skate e desfilou um repertório com canções como “Quer Voar”, “Cogulândia”, “777-666”, “Gorila Roxo”, todas com mais de 50 milhões de audições no Spotify. Em meio ao sucesso “Kenny G”, Matuê pegou um skate e mostrou os dizeres “Fora Bozo” escritos na madeira. O público aplaudiu efusivamente, enquanto o jovem falava palavras de ordem.
Demi Lovato foi a grande surpresa do dia, pelo menos para quem não era muito fluente em sua carreira, meu caso. Com visual, pegada e sonoridade lembrando um show das The Runaways, Lovato desfilou um repertório em que havia espaço para o novo álbum “Holy Fvck”, no qual ela equaciona influências que vão de Hole e Avril Lavigne, para chegar em Pink e Lady Gaga, com uma diferença primordial – a voz. Demi tem um registro vocal privilegiado e parece ter seis pulmões nos momentos mais intensos. Deste novo trabalho vieram ótimas versões ao vivo de “Skin Of My Teeth”, “29”, “City Of Angels”, “Freak”, “Substance”, “Eat Me” e a faixa-título, todas já devidamente amadas e assimiladas pela quantidade imensa de fãs presentes sob a chuva que caiu na Cidade do Rock.
Demi não deixou os sucessos mais queridos do público que a acompanha desde o início da carreira. Logo, não poderiam faltar “Confident”, “Heart Attack”, “Sorry Not Sorry” e “Cool For The Summer”, que ganharam versões roqueirinhas na medida do clima do show. Mas minha canção predileta – “The Art Of Starting Over” – surgiu num arranjo meio acústico, com sua levada à la Fleetwood Mac bem executada pela impressionante banda que Demi arregimentou para o show, com destaque absoluto para a guitarrista Nita Strauss, que tocava com Alice Cooper e cerrou fileiras com a cantora. Nita foi um show à parte, enfileirando licks e riffs pirotécnicos, além de sustentar sozinha todas as canções do show. Além de Nita, a banda contava com as presenças de Britt Bowman (bateria), Leanne Bowes (baixo) e Dani McGinley (teclados). Dá pra dizer que Demi fez o melhor show estrangeiro do Rock In Rio até agora, deixando pra trás o Gojira e o Iron Maiden, ambos do dia 2.
Fechando o Palco Sunset no dia 4, Gilberto Gil e sua família se apresentaram para uma plateia já ganha. O repertório é imbatível, oscilando entre colossos dançantes – “Palco”, “Toda Menina Baiana” – e belezuras mais contemplativas – “Drão”, “Estrela”. Com a presença de Bem Gil e João Gil se revezando nas guitarras e baixos, além de José Gil na bateria, a banda ganhou muita força com o naipe de metais capitaneado pelo trombonista Marlon Sette, da banda que acompanha Jorge Benjor. NOs vocais de apoio, Nara Gil (filha), Flor Gil (neta) e Mariá Pinkusfeld (nora) deram conta do recado, com espaço para uma performance fofa de Flor com o avô, cantando uma versão reggae e bilingue de “Garota de Ipanema”. Emocionada, a menina não conseguia conter as lágrimas, protagonizando um momento emocionante.
Tudo bem que Gil tem vigor impressionante e a química com sua família no palco é irresistível, mas o show que ele deu no Mita, recentemente, foi bem melhor que este do Rock In Rio. De qualquer forma, o acadêmico, do alto de seus 80 anos, é um fenômeno de vigor e simpatia. Axé.
Fotos: Produção Rock In Rio, Vinicius Pereira, Carlos Elias Jr
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.