Ritchie – A Nossa Invasão Britânica

 

 

 

Os mais novos talvez não se deem conta, mas, viver no Brasil em 1983/84 era ouvir “Menina Veneno” nas rádios. Era inescapável, como fora, poucos meses antes, ouvir “Você Não Soube Me Amar”, da Blitz, e como seria “Pintura Íntima”, do Kid Abelha ou “Bete Balanço”, do Barão Vermelho num futuro bem próximo. Ninguém pode acusar o rock nacional dos anos 1980 de não ser pródigo em hits contagiantes e imorredouros. E, falando neles, as mesmas rádios se fartariam com mais faixas do primeiro álbum de Ritchie, “Voo de Coração”. Ele é um dos grandes, enormes clássicos dessa produção pop rock moderna brasileira, que se iniciou naquele biênio de 1982/83. Com arranjos modernos, roqueiros, tecladeiros e postura renovada, os novos superstars brasileiros eram irresistíveis para um público que vinha ávido por novidades para dar vazão ao sentimento de contemporaneidade em relação ao que acontecia na cena musical pop anglo-americana. No caso específico de Richard Court, a fórmula era mesmo infalível, afinal de contas, um homem trazia em si o DNA do rock inglês. Ou mais ou menos isso.

 

 

Ritchie passara os anos 1970 se virando. Chegou por aqui no início da década como um dos admiradores que gravitavam os Mutantes em sua transição pós-Rita e pós-Arnaldo. Uma vez em São Paulo, formou a banda Scaladácida, que durou pouco tempo. Participou da última encarnação do grupo progressivo A Barca do Sol e, pouco tempo depois, estava no mítico Vímana, junto de, entre outros, Lulu Santos e Lobão. Era um personagem dos shows e do embrionário roteiro de atrações jovens num Rio de Janeiro sob ditadura militar, que lutava para existir com alguma liberdade. Ele também atuava como professor de Inglês e, à medida que os projetos iam e vinham, mantinha a rotina de compor suas canções e registrá-las em gravações caseiras. Numa dessas idas e vindas, conheceu Jim Capaldi, integrante do grupo inglês Traffic, de quem se tornou amigo em 1974 a ponto dele também registrar algumas demos no equipamento de Ritchie. O tempo passou e, lá por 1980, chegou o convite, vindo de Londres: “Venha participar do meu novo álbum, “Let The Thunder Cry”. Era Jim. Num estúdio com músicos do calibre de Andy Newmark (John Lennon), Simon Kirke (Free, Bad Company), Reebop Kwaaku Bah (Traffic) e Mel Collins (King Crimson), Ritchie se sentiu motivado a tentar destravar uma carreira solo, que se fazia ainda mais necessária face ao sucesso que Lulu Santos vinha fazendo e que Lobão logo viria a fazer.

 

 

Para viabilizar suas canções ainda embrionárias, Ritchie convidou Bernardo Vilhena para escrever letras e, a partir daí, vendo a parceria fluir, procurar uma gravadora. Quem o ajudou na produção dessa primeira demo com viés profissional foi um velho aluno de Inglês: Liminha. Uma vez gravada, ela circulou em várias gravadoras até chamar a atenção da CBS, que ainda não tinha um nome forte em seu cast para fazer frente aos novíssimos contratados de suas coirmãs. Em fevereiro de 1983, o compacto com uma dessas canções foi lançado: “Menina Veneno”. A partir daí, nada seria como antes para Ritchie. O sucesso da canção teve um início peculiar. Fortaleza foi o primeiro lugar em que a faixa caiu no gosto popular, fruto da ação de um programador de rádio, que decidiu não esperar pelos testes de público que a gravadora pedira. “Menina Veneno” entrou na programação antes da hora e o sucesso estrondoso que veio em seguida obrigou a CBS a adiantar a produção do álbum, que se chamaria “Voo de Coração”. Uma vez lançado, o disco transformou-se num berçário de hits.

 

 

É fácil entender o porquê. Ao contrário dos lançamentos de gente como Barão Vermelho, Blitz ou mesmo Lulu Santos, Ritchie trazia algo de cool em sua postura. Era uma figura muito mais conectada com o new romantic inglês daquele tempo, seja no visual, seja na sonoridade. O sotaque britânico – um obstáculo para sua aceitação pelas gravadoras – provou ser quase imperceptível quando cantava, enquanto que havia algo de exótico no fato de Ritchie ser um, digamos, autêntico inglês. A riqueza melódica do álbum também provou ser imbatível em seu tempo. Baladas, tecnopops, covers, havia de tudo nas dez faixas do disco. Cinco delas foram parar nas programações das rádios e nos programas de auditório do país. Na verdade, “Menina Veneno”, a mais popular de todas, que foi parar na trilha sonora da novela “Pão Pão Beijo Beijo”, era só o começo.

 

 

“A Vida Tem Dessas Coisas” foi o segundo single e, se não tocou tanto quanto a antecessora, fez bonito nas paradas. Com alguns versos que colocavam a Zona Sul do Rio como o cenário de um amor desencontrado pelas coincidências e pela ausência delas (“você passou num circular pela Praia do Leblon/Corri atrás, tarde demais, perdi a condição/De conversar, de te convencer”), a canção tinha um arranjo pianístico bem interessante e serviu para manter a figura romântica iniciada com “Menina”. “Pelo Interfone”, com seu arranjo caribenho tornado possível por programações eletrônicas adoráveis, foi o terceiro single. O destaque sensacional da faixa vem pelos diálogos de nosso herói através dos meios de comunicação da época – telefone, interfone – até conseguir falar com sua amada: “não quero te prender, mas não posso ter perder, esse é um dilema que nem o cinema pode resolver”.

 

 

“Casanova”, uma das mais sensacionais criações de Ritchie em todos os tempos temporais, foi a quarta canção de “Voo de Coração” a sair como single. Estourada no país por conta da novela global “Champagne”, da qual foi tema de abertura, a canção tem um arranjo tecnopop sensacional, percussivo, bem feito, moderníssimo para seu tempo, algo meio único na música brasileira daquele tempo. Fechando o hall de sucessos do disco, “Voo de Coração”, a canção, trazia a participação de Steve Hackett, ex-guitarrista do Genesis, com um belíssimo solo, além da bateria do ex-companheiro de Vimana, Lobão. O outro ex-parceiro de banda, Lulu Santos, também participa em outras canções – “No Olhar”, “Tudo Que Eu Quero” e na já mencionada “Casanova”. Como curiosidade, uma cover new wave de “The Letter”, sucesso maior dos Box Tops, banda que revelou ao mundo o guitarrista do Big Star, Alex Chilton, lá nos anos 1960.

 

 

Ritchie ainda seria um nome forte no ano seguinte. Participou de “Velô”, disco em que Caetano Veloso dava umas ciscadas no terreiro do rock oitentista nacional, na faixa “Shy Moon”, que tocou demais em rádios. Além disso, lançou seu segundo álbum, “E A Vida Continua”, do qual vieram dois ótimos hits: “Só Pra O Vento” e a sensacional “A Mulher Invisível”. Desentendimentos e boatos de descontentamento da grande estrela da CBS, Roberto Carlos, com o sucesso romântico de Ritchie foram minando sua relação com a gravadora, a ponto dele pedir o boné após o fraco desempenho de seu terceiro álbum, “Circular”, lançado em 1985. De fato, Ritchie seria contratado pela Polygram e por ela lançaria um novo trabalho em 1987, “Loucura e Mágica”, do qual saiu seu último grande hit nacional: “Transas”, que também fez parte da trilha sonora de uma novela global: “Roda de Fogo”. Depois disso, seus álbuns não rederam tanto, sua participação no grupo Tigres de Bengala, ao lado de Cláudio Zoli, Vinícius Cantuária, Dadi, Mu e Billy Forghieri não foi muito além do primeiro álbum, lançado em 1993.

 

 

O tempo mostrou que, para o bem ou para o mal, o primeiro álbum de Ritchie representa, de fato, o melhor momento de sua carreira. A comemoração de seus quarenta anos é mais do que justa e o cantor está correndo o país com um espetáculo calcado nele, mas também trazendo os grande hits de sua carreira. Se Ritchie passar por sua cidade, dê um jeito de vê-lo ao vivo. Sua obra é grande, assim como sua importância para o rock brasileiro dos anos 1980. Falando nisso, ele estará presente na cidade-sede da Célula Pop, a adorável Niterói, fazendo uma apresentação gratuita na Praia de São Francisco, com a participação, veja só, de Steve Hackett, que deve repetir seu ótimo solo de guitarra em “Voo de Coração”. Mais do que merecido.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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