Obrigado, João Donato! E vá com Deus

 

 

Acabei de postar nas redes sociais: quando morre alguém da estatura de João Donato, a gente tem a certeza que a lacuna deixada dificilmente será preenchida. Senão vejamos. Donato, 88 anos, mais de setenta de carreira, ajudou a criar a bossa nova ainda em meados dos anos 1950. Foi um dos expoentes do “lado jazz” da bossa, composto por músicos brasileiros que deram suas próprias versões para o ritmo americano, ajudando a criar uma nova variante, que se casou com as experiências que vieram do lado de Jobim, Gilberto e cia. É correto dizer que a turma de Donato seria uma das responsáveis pelo que se chamou de samba-jazz nos anos 1960. E também é correto dizer que ele encontrou um espaço muito mais interessado e cheio de oportunidades nos Estados Unidos. E foi com Jobim que Donato viria a realizar a sua estreia em disco, “Cha Dançante”, lançado antes do estouro da bossa nova, em 1956.

 

 

João já era pianista profissional desde os 19 anos e liderava o Donato e seu Conjunto, quando recebeu a oportunidade. A atuação de Jobim foi como curador do repertório do álbum, que seria lançado pela Odeon. Entre as canções escolhidas estavam No rancho fundo” (Lamartine Babo – Ary Barroso), “Carinhoso” (Pixinguinha – João de Barro), “Baião” (Luiz Gonzaga – Humberto), “Peguei um ita no norte” (Dorival Caymmi). Dali em diante, ele iniciaria uma carreira de sucesso e prestígio, que o levaria para uma temporada nos Estados Unidos, tocando em cassinos e boates. Voltaria em 1962, com a Bossa Nova já estourada mundialmente. Ficou pouco tempo, regressando para a terra do Tio Sam e mantendo sua trajetória lá fora, já tendo na bagagem discos importantes como “A Bossa Muito Moderna” (1963) e “The New Sound Of Brasil” (1965). O trabalho mais surpreendente desta fase da carreira de Donato que, na verdade, antecipa o momento que viveria na primeira metade da década seguinte, é “A Bad Donato”, lançado em 1970. É um disco surpreendente e impressionante, que mostra como João se tornara fluente no jazz moderno, quase tangente ao funk, com arranjos que também incorporavam psicodelia, trazendo versões diferentes para canções que, àquela altura, já se tornaram clássicos de sua lavra como “A Rã” e “Cadê Jodel?”. Os arranjos ficaram por conta de Eumir Deodato – uma estrela em ascensão na época -, que recrutou gente como Bud Shank, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão e Paulinho Magalhães para participar do álbum.

 

 

João voltaria ao Brasil em 1972 e lançaria os dois discos mais representativos de sua música no Brasil: “Quem é Quem” (1973) e “Lugar Comum” (1975). O primeiro é o grande trabalho de jazz samba que ele sempre desejou fazer, devidamente turbinado por suas vivências musicais acumuladas em mais de dez anos nos Estados Unidos. É o primeiro trabalho em que Donato canta, com produção de Marcos Valle e alternando clássicos como “A Rã” (cantada pela primeira vez, com letra de Caetano Veloso), “Cadê Jodel?”, “Me Deixa” (que recebeu letra de Geraldo Carneiro), o instrumental “Amazonas” e até uma composição inédita de Dorival Caymmi, feita especialmente para o disco: “Cala Boca Menino”. Em seguida veio o “disco baiano” de João Donato, “Lugar Comum”, cuja faixa-título já marcava sua parceria com Gilberto Gil. Outras duas faixas também receberam letra de Gil: “A Bruxa de Mentira” e “Emoriô”, esta última bem em sintonia com o momento pelo qual Gil atravessava, a transição entre os álbuns “Refazenda” (1975) e “Refavela” (1976). Os dois ainda assinariam pelo menos uma canção de muito sucesso, cerca de dez anos depois: “A Paz”, que seria gravada por Zizi Possi e, posteriormente, por Gil em seu álbum “Em Concerto”, de 1987.

 

 

Falando nisso, Donato só regressaria ao disco cerca de vinte anos depois, compondo esporadicamente para outros artistas. Deste período é a nossa canção preferida de sua lavra, “Nasci Para Bailar”, que ganhou interpretação marcante de Nara Leão em 1982. Ele teria um belo álbum instrumental lançado em 1986, “Leilíadas”, totalmente dedicado à esposa, Leila, mas sua volta efetiva ao disco seria mesmo em 1995, com “Coisas Tão Simples”, no qual retorna aos clássicos dos anos 1960, grava inéditas (como a linda “Gaiolas Abertas) e revê canções mais recentes, caso da própria “Nasci Para Bailar”, que ele interpreta com o filho, Donatinho, ainda bem jovem. Daí pra frente, ele lançaria dezenas de álbuns, entre registros ao vivo, discos de inéditas, colaborações e parcerias. A gente destaca “A Blue Donato” (2006, com interpretações minimalistas de alguns clássicos perdidos), “Água” (2011, bela colaboração com a cantora Paula Morelenbaum), “Aquarius” (2012, em parceria com Joyce Moreno, no qual os dois dividem repertórios), “Donato Elétrico” (2016, um discaço com canções arranjadas tendo o jazz fusion como linha mestra) e a trinca mais recente de álbuns: “Sintetizamor” (2017, em parceria com Donatinho, numa pegada de funk-jazz oitentista), “Síntese do Lance” (em parceria com Jards Macalé) e o sensacional “Serotonina”, lançado em 2022, no qual Donato surge atemporal, totalmente sintonizado com novos parceiros, como Anastácia, Céu, Maurício Pereira e Rodrigo Amarante. O disco foi um dos destaques de nossa lista de melhores de 2022.

 

 

João Donato teve uma carreira impressionante e muito influente para a consolidação da música brasileira no exterior. Aqui, como vários outros contemporâneos seus, foi menos conhecido e reconhedido do que deveria. Por essas e outras, é necessário recomendar alguns destaques de sua vastíssima trajetória. Hoje e sempre. Obrigado, João.

 

Aqui vão nossas recomendações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E aqui vai um momento dourado, suspenso no ar. Donato ao vivo, no Sesc, em 2010, numa versão matadora de “Nasci Para Bailar”, acompanhado por Luisão Maia, Robertinho Silva e Ricardo Pontes.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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