O Cinema Sonoro dos Paralamas do Sucesso
Rio de Janeiro, segundo semestre de 1983. Enquanto eu lutava para não ficar em recuperação de Matemática no Colégio Santo Agostinho, os Paralamas do Sucesso faziam o equivalente a uma prova de vestibular. Após a gravação do primeiro compacto da banda, trazendo “Vital e Sua Moto” e “Patrulha Noturna”, o lançamento das duas músicas serviria para colocar o trio no mapa sonoro daquela época. A Blitz já havia estourado nacionalmente no ano anterior e havia uma movimentação intensa, tal qual formigueiro cutucado, de bandas em busca de gravadoras e de gravadoras em busca de bandas, todos em busca do público nascente. Essa gente jovem queria artistas brasileiros, jovens, descolados, coloridos, alegres, que comunicassem diretamente sobre as dúvidas e questões cotidianas. Os baluartes da MPB não tinham essa linha de contato e a Blitz provara que essa conexão era possível e lucrativa. A EMI-Odeon, que havia lançado o grupo carioca, estava em busca de mais integrantes jovens para seu elenco e enxergava nos Paralamas uma contratação natural.
Em abril de 1983 eles já estavam em estúdio gravando o tal compacto com “Vital” e “Patrulha”. Devidamente testados na programação da Rádio Fluminense FM no fim de 1982, onde fora parar a fita-demo da banda, os Paralamas eram uma aposta segura. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone já tinham credenciais a apresentar: eram bons músicos, tinham obra autoral e um leque de influências novas, que iam de The Clash e The Beat e The Police e The Jam, ou seja, a nata do pós-punk britânico, que era chamado de “new wave” por aqui, mas que simbolizava, acima de tudo, a sonoridade moderna que era feita em grandes cidades como Londres, na qual a música negra era contemplada e incorporada pelo rock de forma decisiva. Esse acento distinguia os Paralamas em relação à maioria de seus contemporâneos e se materializava na inocência de “Vital” e “Patrulha”, ambas dotadas de timbres e detalhes que linkavam os Paralamas a essas influências.
Com o compacto nas lojas em junho, o grupo deu prosseguimento às gravações do primeiro disco, “Cinema Mudo”. Por conta de inexperiência dos três integrantes especialmente sobre a mecânica das relações com diretores artísticos, a sonoridade do álbum não ficou de acordo com os desejos dos Paralamas. Interferências de todos os tipos marcaram as gravações e, por mais que o álbum tenha produzido hits – além de “Vital” e “Patrulha”, vieram a faixa-título e “Química” – o trio sempre achou que este era o patinho feio de sua discografia. Até agora. Para comemorar os quarenta anos – o tempo, ele voa – da banda, “Cinema Mudo” foi totalmente remixado em estúdio e, ouvindo o resultado desse trabalho, dá pra dizer que soa finalmente próximo do que a banda mostrou nos álbuns seguintes.
Ao revisitar os tapes originais, a banda tinha como principal objetivo o esmero técnico: melhorar a qualidade e a experiência sonora com a tecnologia digital sem mexer nos detalhes da gravação original para não descaracterizar o som. Para isso, ouviram e reouviram equalizando as gravações da mesa de som, que na época tinha apenas 16 canais, o que não permitia captar todos os instrumentos ao mesmo tempo. Para a bateria, por exemplo, era necessário escolher que parte gravar, e priorizaram bumbo e a caixa. No ouvido apurado da banda, algumas músicas apresentavam sonoridades diferentes entre elas, uma vez que o trio precisava montar e desmontar os instrumentos todas as vezes que iam gravar, já que usavam o tempo vago dos estúdios da EMI entre as sessões das então estrelas da casa. Para este relançamento, fizeram um trabalho técnico bastante minucioso, a fim de superar as limitações técnicas da época. Nenhum novo som foi acrescentado. Quem comando esse processo de remasterização foi o engenheiro de som Daniel Alcoforado, que usou o Estúdio Nas Nuvens, com Ricardo Garcia, na remixagem.
“Cinema Mudo” é um clássico álbum deste início de rock nacional oitentista. É ingênuo, alegre, mostrando o espírito da banda naquele tempo. As canções são exuberantes, com humor e musicalidade muito acima da média de então. “Vital e Sua Moto” se tornou, além do primeiro hit dos Paralamas, um de seus maiores e mais fortes cartões de visita, sendo, certamente, a canção mais conhecida do disco. Mas esta remasterização/remixagem é uma ocasião ideal para ouvir esse repertório inicial dos Paralamas. “Foi O Mordomo”, por exemplo, foi um semi-hit, que chegou a ganhar clipe surrealista no Fantástico, dirigido por José Emilio Rondeau a partir de roterio de Ana Maria Bahiana. Além do ska clássico da faixa-título, que eu sempre achei que chupava um pouco do tema do desenho “Os Mozzarellas”, há “Volúpia”, com saxofone de Leo Gandelmann – a primeira música com metais do grupo – lembrando um pouco os fraseados da Banda Vitória Régia. Tem a ótima “Vovó Ondina É Gente Fina”, que homenageia a avó de Bi, dona do apartamento de Copacabana no qual a banda ensaiava desde o início dos tempos, além da curiosa “O Que Eu Não Disse”, com participação de Lulu Santos nas guitarras slide e de “Encruzilhada”, canção dos primeiros dias do grupo, chamada originalmente de “Encruzilhada Agrícola-Industrial”. Além delas, “Química”, de Renato Russo, um hit na programação da Fluminense FM, antecipando a chegada de seu grupo, Legião Urbana, ao elenco da EMI-Odeon alguns meses depois.
Este é um álbum que leva este que vos escreve de volta ao quarto no apartamento da Constante Ramos, no qual o aprendizado de Matemática parecia tão impossível quanto achar a Arca Perdida. A tal ponto que, pela primeira vez, precisei de aulas particulares, com o grande professor Délio Freire, uma vez que os conhecimentos do meu avô já não davam conta do que era ensinado no colégio. Se voltar no tempo é isso, que seja ao som deste disco, um dos primeiros que comprei conscientemente, naquele início de 1984, sem imaginar como os Paralamas estariam presentes nesses anos todos.
Em tempo: já faz bastante tempo que meus textos sobre o grupo perderam qualquer capacidade crítica, passando a adotar um tom de biografia, crônica, tudo, menos crítica. São amigos de infância, testemunhas oculares daquele e de outros tempos.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Ótimo texto. E resgata nossa memória afetiva. Eu mesmo me vi nesses tempos lembrando de quando montava minha bateria e colocava os discos dos Paralamas pra acompanhar. Como minha mãe falava: ” Isso é uma cachaça”!
Hoje me pego amigo de música dos caras…no último show deles na arena jockey percebi o quanto esses caras são importantes pra mim. Viva os Paralamas!!!