Nirvana – quase – para crianças

 

 

Ontem, dia 05 de abril, foi o 27º aniversário de morte de Kurt Cobain. Sempre penso em como Kurt estaria caso tivesse sobrevivido ao coquetel drogas-fama-alienação que o vitimou naquele outono (no Hemisfério Sul) de 1994. Muitos dizem que ele estaria contando suas notas de dólar, outros – como eu – não conseguem apontar um prognóstico lógico. Teria Kurt cedido ao peso do mercado e da injustiça econômica inerente ao entretenimento enquanto indústria? Como ele lidaria com as redes sociais, com os influenciadores? Com um governo trump? Muito arriscado prever. E o Nirvana? Como teria ficado? Mais discos? Mesmos integrantes? Que músicas teria feito? Sobre a banda dá pra arriscar: ela não teria durado muito mais tempo. Kurt certamente se encheria do formato de trio, talvez lançasse algo como artista solo, talvez reativasse o grupo anos depois para alguns shows e, quem sabe, um outro álbum…

 

O fato é que, olhando para trás, com o Nirvana alçado à condição de banda mitológica, fica difícil destacar um ou outro momento de novidade, uma vez que tudo parece ter sido escrutinado sob lupas muito potentes. Mas convém dividir com vocês um raro momento em que a banda mostrou uma inegável capacidade de soar diferente de seus companheiros de Seattle. Aliás, uma olhada atenta à obra do Nirvana há de mostrar que tratava-se de uma banda muito distinta de Alice In Chains, Soundgarden e mesmo do Pearl Jam. O Nirvana tinha uma veia punk mais proeminente do que todos, sua natureza era mais afeita à espontaneidade e, em casos raros, ao bom humor. Sim, perceber o Nirvana é perceber esta faceta zoeira, que está lá em momentos como a versão alternativa de “Stay Away” (em que a banda canta “Pay to Play”) ou no clipe de “In Bloom”, no qual a banda simula uma apresentação em um programa à la Ed Sullivan Show. E há o momento supremo deste Nirvana muito peculiar e engraçado: “Sliver”.

 

Lançada como compacto em 1990 e relançada como single em 1993, “Sliver” é meu momento preferido com a banda, seja em música, seja em clipe. É um milagre de realização pop, uma confluência de informações, de lindezas, ainda que tenha uma aura de maluquice e terror pairando. A história é simples: Kurt Cobain assume a vez de uma criança, que foi deixada pelos pais na casa do Vovô Joe. O motivo: papai e mamãe foram a um show. A criança, claro, não queria ir, mas foi obrigada pelas circunstâncias. Começa aí uma sucessão de roubadas para o pequeno, que é submetido a momentos de quase tortura, indo desde o jantar que não estava bom, pelo passeio de bicicleta no quintal, que termina com uma bela topada no dedão do pé. A única coisa que compensa um pouco a roubada é o pote de sorvete que a criança recebe para depois, em segurança, acordar nos braços da mãe. Ao longo da canção, Cobain repete “Grandma take me home” umas vinte vezes.

 

O clipe é uma pequena obra-prima. A filha de Kurt, Frances Bean, aparece ainda bebê, dançando ao som da música e a banda surge no que parece ser um quarto de criança, completamente abarrotado de coisas, com brinquedos estranhos, posters meio assustadores nas paredes e uma aura de terror. Várias vezes Frances aparece no clipe com expressão de medo, enquanto a banda vai destruindo o cenário e arrebentando várias coisas. Para culminar, vários closes são dados num macaco de corda, que fica batendo pandeiros, numa mistura de inocência e loucura.

 

“Sliver” entrou na coletânea de raridades “Incesticide”, lançada pela banda em 1992, na esteira de “Nevermind”, seu segundo álbum. A gravação de “Sliver” foi feita com a produção de Jack Endino e com a bateria de Dan Peters (do Mudhoney), realizada em dois takes em cerca de uma hora, com Cobain completando os vocais alguns dias depois. Em 2012, o grupo Gaslight Anthem fez uma bela cover da canção e a lançou como faixa-bônus no seu quarto álbum “Handwritten”.

 

“Sliver” mostra esta faceta esquisita, porém engraçada, do Nirvana. Quando olho para trás, talvez por imaginar Kurt se esbaldando com o clipe e a canção, talvez eu prefira pensar nele desta forma e não como o homem que foi amassado pelas questões que tanto criticou – alienação, fama, incapacidade de existir diante de um sistema tão opressor.

A canção apareceu em vários lançamentos do Nirvana.

 

– Incesticide – 1992
– From The Muddy Banks Of Wishkah, 1996
– Nirvana – coletânea, de 2002
– With The Lights Out (versão demo), 2004
– Sliver, Best of The Box, 2006
– Live At Reading 92, 2009
– Nevermind (edição de luxo), 2011
– Live At Paramount, 2011
– Live and Loud, 2019

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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