Nirvana em toda a sua glória, à beira do abismo

 

 

1991, The Year Punk Broke, documentário lançado no final de 1992, acompanha uma breve turnê europeia de bandas estadunidenses ocorrida no ano anterior. Entre clipes de shows, há muitas cenas de backstage e de rua. Há uma tensão a percorrer o filme, como um mar que promete boas ondas e, ao mesmo tempo, traz tempestades. A dúvida já começa no título: em 1991 o punk deslanchou ou faliu?

 

A protagonista do filme é a Sonic Youth, então já com bons anos de estrada. Mas são as cenas da coadjuvante, uma banda chamada Nirvana, que se tornariam a principal atração do documentário. Sua música agressiva e cheia de dissonâncias é exibida entretendo multidões nos festivais de verão europeus.

 

Sinal de reconhecimento e apreciação? Ou prova de sua massificação descontrolada? Quando Thurston Moore, da Sonic Youth, interpela jovens sobre o que pensam em fazer contra as grandes gravadoras, ocorreu a alguém lembrar que a banda já era parte do cast de uma delas?

 

Várias facetas de Nevermind, segundo álbum da Nirvana, lançado em setembro de 1991, podem ser comentadas a partir de questões similares, todas a explorar as dualidades da obra que superou até Michael Jackson nas paradas da Billboard e já vendeu mais de 35 milhões de cópias mundo afora.

 

São duas (e esse número vai ocorrer muitas vezes neste texto) as sessões que serviram de base para o repertório de Nevermind, com suas 12 faixas. “Breed”, “In Bloom”, “Stay Away”, “Lithium” e “Polly” já apareciam em gravações de abril de 1990 (Smart Sessions). Ao passo que “Smells like Teen Spirit”, “Territorial Pissings”, “Lounge Act”, “Come as You Are”, “Something in the Way” e “On a Plain”, registradas em uma fita de março de 1991 (Boombox Rehearsals), são de composição mais recente, assim como “Drain You”.

 

Entre uma data e outra, a banda assinara com uma major, deixando a independente Sub Pop. Depois de filar vários jantares em conversas com diversas gravadoras, a escolha recaiu sobre a DGC, a cujo cast já pertencia a Sonic Youth. A DGC depositava algumas expectativas no trio, mas não imaginava o quanto elas estavam subestimadas.

 

Entre uma data e outra, a banda passa a contar com Dave Grohl como baterista. O instrumentista da Mudhoney, Dan Peters, chegou a integrar o trio, depois que Chad Channing foi dispensado por Kurt Cobain e Chris Novoselic, dois garotos que começaram a tocar juntos em Aberdeen (Washington) traçando o caminho que os levaria às casas de show de Seattle. Mudhoney, TAD e, especialmente, The Melvins eram as bandas com as quais mais se enturmavam na cena local.

 

Uma forma de apresentar Nevermind é situar a evolução da banda a partir de duas matrizes. De um lado, o heavy metal que inspira boa parte da sonoridade de Bleach, o álbum de estreia, gravado em 1988. Ele está nos riffs (“School”) e nas atmosferas (“Floyd the Barber”). Entenda-se bem: um metal desconstruído e revirado. A outra matriz é o punk, com o qual a Nirvana se identifica mais diretamente, a ponto de recorrer a suas versões mais básicas durante e sobretudo depois de Bleach (“Sliver”, “Been a Son”, “Molly’s Lips”, “About a Girl”). Por conta dessa veia punk, o resultado é bem diferente daquele alcançado pela conterrâneas Soundgarden e Pearl Jam.

 

Em Nevermind, o metal vai ser praticamente descartado, abrindo espaço para o punk dominar. Mas não em sua versão básica (com a exceção de “Breed”, ainda assim turbinada com os aditivos do álbum) e sim em elaborações que vão flertar (“Come as You Are”; “In Bloom”) e mesmo mergulhar (“Lithium”, tão Beatles) em construções pop. A gritaria de Cobain, as distorções das cordas e a violência da bateria, distribuídas entre a maioria das faixas do álbum, couberam todas na mixagem talhada para rádios mainstream. Andy Wallace (que já colaborara com a Slayer) ficou incumbido de polir o sensível trabalho de produção feito por Butch Vig.

 

Não por acaso, essas três faixas pop serão destacadas por singles e videoclipes. Nos vídeos, a banda enviava duplas mensagens. É especialmente o caso de “In Bloom”, uma das mais antigas composições a entrar em Nevermind. A letra provoca caras que gostam de músicas legais mas não entendem o que elas querem dizer. O vídeo tem duas metades: primeiro, a banda está bem comportada em um show de auditório ambientado nos anos 60; depois, aparece sob um trio de vestidos, que destrói os instrumentos e o cenário.

 

Travestir-se era parte da mensagem política da banda. Ela se dirigia ao público típico do metal, provocado com as roupas de Cobain e com os beijos de Novoselic e Grohl. Por outro lado, o punk era embalado em um existencialismo carregado pelas letras de Cobain, que não traziam mensagens claras. “Sad punk”, título de uma música contemporânea da Pixies (que merecerá uma outra menção adiante), descreve bem o compositor dessas letras. A crítica social e o cinismo estão juntos na famosa capa de Nevermind.

 

Tudo isso está também em “Smells like Teen Spirit”, música que abre o álbum e que foi a primeira a ser distribuída como um single. E também a ganhar um vídeo, cuja divulgação massiva na MTV ajudou bastante no estouro da Nirvana. No que parece ser um ginásio escolar, a banda apresenta-se acompanhada de cheerleaders (detalhe: suas roupas com o logo anarquista) e cercada de jovens (“18 a 25 anos”, anunciava a chamada para figurantes). Desafiando a letra que cifradamente comenta a apatia e a alienação de uma geração crescida sob os governos conservadores de Reagan e Bush e sob as ameaças da AIDS e da hecatombe nuclear, o público rebela-se e mistura-se aos músicos. Zona total.

 

Lembro da primeira vez que escutei a música, veiculada na programação da Rádio Fluminense FM, sem saber de que se tratava. Achei fascinante e meu palpite, sem muita confiança, ia para a Pixies. De fato, a banda de Boston foi uma das principais inspirações para “Smells like Teen Spirit” e sua dinâmica loud-quiet-loud. Mas o riff aproxima-se de “More than a Feeling”, sucesso de Boston, a banda dos anos 70. Na apresentação no festival de Reading de 1992, a Nirvana faz uma citação explícita e sarcástica a essa música.

 

“Smells like Teen Spirit” é bem ilustrativa da síntese a que a banda havia chegado. A guitarra oscilando entre vários registros, dos mais discretos aos mais esporrentos, incluindo um solo bem encaixado que se converte em uma longa microfonia. No diálogo com o baixo pulsante, a bateria furiosa mas sem excessos, fazendo as marcações firmes e ao mesmo tempo criando trepidações que a destacam. A voz inicia comedida, torna-se rascante e termina visceral. A música desfere socos e exala melodia. Não importa o quanto fomos obrigados a escutá-la: trata-se de uma joia pop-punk.

 

Pouco tempo depois, “Smells…” já tinha gerado uma paródia (especialidade de “Weird Al” Yankovic) e ganharia uma versão (Tori Amos, que tem apenas o piano como acompanhamento). No Brasil, além do quase cover de Cássia Eller lançado em 2000, vale lembrar o trocadilho bolado pela Gangrena Gasosa, que no mesmo ano batizou um álbum seu de Smells Like a Tenda Espírita. A banda mato-grossense Macaco Bong, por sua vez, produziu versões instrumentais de todas as faixas de Nevermind, com resultados interessantes.

 

Seria impossível mencionar tudo que sofreu alguma inspiração desse álbum. Com Nevermind, a Nirvana inaugurou um novo capítulo da música pop, como a principal protagonista de uma cena (“Seattle”) e de um rótulo (“grunge”). A conjunção de barulho e melodia produzida por um power trio demonstrou-se altamente produtiva, mais uma vez desmentindo as sentenças sobre a morte do rock.

 

A aposta na sonoridade orgânica (lembrando que tal termo é sempre relativo) refletiu-se na escolha do lugar onde a Nirvana gravou seu álbum em apenas 16 dias. Sound City era um estúdio nos arredores de Los Angeles com uma história gloriosa, mas ameaçado pelos avanços das tecnologias digitais. O sucesso de Nevermind não apenas deu uma sobrevida ao Sound City, mas armou de argumentos quem apostava no futuro de uma música de baixas tecnologias. Muitos anos depois, Dave Grohl compraria a mesa de gravação do Sound City e contaria sua história.

 

Tratando-se do Brasil, marcas da força renovada do rock cru podem ser percebidas não apenas nas guitar bands que optaram pelo inglês nas letras, não apenas nos ingredientes do caldeirão do mangue bit e de outras “misturebas” dos anos 90. Aparecem também na aposta dos Titãs em Titanomaquia, que contou com a colaboração de Jack Endino, o produtor de Bleach. E até em citações nos shows da Legião Urbana (que eventualmente misturava “Lithium” a “Perfeição”), mesmo que Renato Russo não tenha se impressionado com Nevermind.

 

Esse lado construtivo não pode ser comemorado sem menção a um impulso básico da Nirvana, que ia na direção oposta. “Vandalismo – tão bonito quanto uma pedra na cara de um guarda” era a frase decalcada na guitarra de Cobain, conforme a descrição que André Barcinski faz de um show antológico no dia 31 de outubro de 1991, em Seattle. O jornalista conta, no livro Barulho, como a apresentação terminou com Kurt destroçando duas guitarras, a segunda delas arremessada por um golpe de baixo de Chris. A bateria com suas peças ao chão, após os chutes de Dave. “Não teve bis. O equipamento estava todo destruído”.

 

A última faixa de Nevermind, “Something in the Way”, é praticamente acústica (fazendo companhia a “Polly”). Seu andamento contrasta com o restante do álbum e é nela que aparece o único instrumento extra, um violoncelo. Na versão em CD, depois que “Something in the Way” termina, passam-se 10 minutos de silêncio e outra música começa. É “Endless, Nameless”, uma jam na sua maior parte brutal e desorientada. Durante o seu registro, Kurt destruiu a guitarra com que tocava. E isso se repetia nos shows, pois várias vezes “Endless, Nameless” era a música escolhida para o encerramento catártico. Aniquilador. “A denial…”

 

Em Come as You Are, livro de Michael Azerrad sobre a Nirvana, Kurt comenta sobre a tour de Nevermind: “A gente achava esquisito sermos tratados como reis, então tínhamos que destruir tudo”. A verdade é que o sucesso de Nevermind acentuou algo que já existia, como mostram trechos de 1991, The Year Punk Broke. No palco do festival de Reading, a bateria já avariada por um arremesso de baixo é a cama onde se joga Kurt (cena que o clipe de “Lithium” repetiria várias vezes, em contraponto com sua composição pop). No backstage, Dave e Chris fazem troça com a abundância de comida e bebida que escorre de suas bocas e mãos.

 

Para Cobain, a vida deslanchava, mas também falia. Em questão de meses, o impulso de destruição se converteria, por uma série de fatores, em pulsão de morte. E cá estamos nós, 30 anos depois de Nevermind, ainda processando tudo que ele e sua banda construíram.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *