Não perca “Estado Zero”

 

 

Está na Netflix desde o início de julho a minissérie australiana “Estado Zero” (Stateless). Produzida por Cate Blanchett e estrelada por Yvonne Strahovski, a Serena Joy de “The Handmaid’s Tale”, a história fala sobre o sistema imigracional australiano e sua maneira de lidar com o fluxo crescente de estrangeiros que tentam entrar no país sem visto. Para fazer isso, a narrativa encontra uma solução sensacional: divide-se em quatro personagens, que coexistem no mesmo lugar, um centro de detenção para estrangeiros ilegais, situado no meio do deserto. Lá teremos contato com as histórias da aeromoça australiana Sofie (Strahovski), do professor afegão Ameer (Faysal Bazzi) e dos funcionários Cameron Standford (Jai Courtney) e Clare Kowitz (Asher Keddie) e seremos apresentados a uma realidade pouco conhecida do público.

 

Digo “realidade” porque a história é baseada na detenção da alemã Cornelia Rau, residente australiana, num desses centros do governo em 2004. Funciona assim: se você não tem visto ou deseja pedir asilo na Austrália, caso seja pego, será enviado para uma instalação estatal – administrada por uma emprega privada – na qual esperará até que seu processo seja julgado. Até lá, sua estadia será, de fato, numa prisão, na qual será chamado por um código alfanumérico e lidará com todo tipo de privação de direitos. Enquanto aguarda um processo que pode ser longuíssimo, o detento fica sem contato com a família e impedido de voltar ao país de origem, bem como de ingressar na Austrália, ou seja, não existe.

 

Está é a situação de Ameer, separado da família na tentativa de chegar na costa australiana, saindo da Indonésia. Como o trabalho é bem remunerado, Cameron Standford deixa de lado seu emprego numa fábrica em busca de uma condição de vida melhor para sua família. E logo se depara com a realidade prisional do lugar. Há punições, discriminações e uma burocracia infinita e que não parece incomodar o governo. E Clare, que chega como diretora substituta do lugar, é obrigada a fazer andar o sistema, sem perder de vista a brutalidade reinante, mas temendo perder seu posto. Aliás, a série é perfeita em mostrar a incapacidade das pessoas em lidar com o sistema, não o prisional/imigracional, mas o da própria sociedade. Suas crenças e valores humanos são colocados à prova o tempo todo e nem sempre há forças ou vontade para fazê-los valer, de fato.

 

A situação de Sofie, no entanto, é tratada como a principal. Com conflitos familiares sérios, ele procura redenção num programa de coachs picaretas, Pat (vivida pela própria Cate Blanchett) e Gordon (Dominic West), cujo propósito é “reinventar” a pessoa, ou seja, fazê-la romper laços com sua vida e abraçar uma nova tentativa, sem, no entanto, mostrar as consequências de tal escolha. É o que acontece com Sofie, que deseja deixar o ambiente opressor em que vive com a irmã mais velha e os pais, procurando ter mais liberdade em sua vida. Tal experiência vai trazer uma série de eventos que culminarão com sua detenção como imigrante ilegal e sua inserção na comunidade de estrangeiros, na maioria indianos, árabes, indonésios, curdos, iranianos e cingaleses.

 

A atuação de Yvonne Stahovski é um dos grandes trunfos de “Stateless”. Se em “The Handmaid’s Tale”, seu personagem veio crescendo aos poucos e ganhando papel decisivo na temporada mais recente, aqui ela entra com o pé na porta, mostrando logo de cara o talento que tem. Com fisionomias perturbadas, falas desconcertantes, postura anárquica, tudo isso contrastando com sua beleza, sua Sofie Werner brilha sozinha, com luz intensa em cada cena que aparece.

 

Além de trazer estes personagens muito bem construídos, “Stateless” mostra sem cerimônia a dureza da política governamental australiana. Sem fazer alarde ou panfletagem, a trama vai fazendo os fatos falarem por si, não deixando outra escolha ao espectador a não ser se indignar com o que vê diante de si. No fim das contas, após falar dos eventos reais, a série diz que o governo da Austrália levou tais centros de detenção para países vizinhos e que instituições estrangeiras e imprensa seguem com acesso restrito às instalações. No fim, números perturbadores: 70 milhões de pessoas estão em situação de deslocamento no mundo, sendo que METADE DELES é composta por CRIANÇAS.

 

Veja. É uma série obrigatória.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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