A seta e o círculo: 40 anos de Boy, do U2

 

 

Siouxsie and the Banshees era uma das bandas que quatro garotos escutavam em Dublin enquanto davam seus passos iniciais na música. Estamos falando de algum momento do ano de 1978, quando é lançado o primeiro single de Siouxsie, “Hong Kong Garden”, com a colaboração de um cara chamado Steve Lillywhite. Os quatro garotos ainda não sabiam, mas Lillywhite produziria também o primeiro álbum da sua banda, o U2, além de vários outros depois. O nome do álbum seria Boy e o ano, 1980.

 

Paul Hewson (aka Bono Vox), David Howell Evans (aka The Edge), Adam Clayton e Larry Mullen Jr., juntos desde 1976, tiveram uma ajudinha do destino ao vencer em 1978 um concurso musical promovido pelo escritório irlandês da CBS, uma major. No ano seguinte, eles gravariam três músicas compiladas em um EP. Seus shows e a repercussão desse EP pavimentaram o caminho que levaria ao primeiro álbum, aos cuidados da Island, peça menor, mas não menos importante, no mundo das gravadoras.

 

É difícil não ceder a uma escuta anacrônica, quando sabemos o que se tornou o U2 ao longo dos anos. Sim, ali já havia algo que prenunciava um futuro glorioso. Por outro lado, façamos um esforço e reconheçamos que, sim, também poderia ser “apenas mais uma banda pós-punk” entre tantas que pipocaram no início dos anos 80. Uma conjunção de fatores propiciou que os quatro garotos ganhassem ao longo da década um reconhecimento estrondoso pelas suas realizações. Entre esses fatores estavam as qualidades de Boy.

 

Gravado em Dublin entre julho e setembro de 1980, o álbum é composto por 11 faixas. Predominam nas letras, escritas por Bono, os dilemas da passagem para a vida adulta. Na época em que Boy foi gravado, ele tinha 20 anos. Larry, o caçula da banda, não tinha completado 19. Os versos eram sobre suas vidas e o desafio de controlá-las (ou não). No caso de Bono e Larry, repercutem ainda a morte mais ou menos recente de suas mães. Não é um álbum colorido, está mais para o preto e o branco em todas as suas combinações, nuances, penumbras e sombras. É o que já anunciam os tons da capa, com a foto de um garoto que reapareceria em outros álbuns do U2.

 

Se nos atemos à sonoridade, podemos dividir as faixas de Boy em dois grupos: músicas marcadas pela intensidade e músicas dominadas pela ambiência. “An Cat Dubh”, “Into the Heart”, “The Ocean” e “Shadow and Tall Trees” fazem parte do segundo grupo. Estão no primeiro “I Will Follow”, “Twilight”, “Out of Control”, “Stories for Boys”, “A Day Without Me” e “The Electric Co.” “Another Time, Another Place” não cai bem em nenhum dos dois grupos e, talvez por isso, acaba sendo uma faixa das que menos chamam a atenção.

 

Uma coisa que sim chama a atenção é como esse par intensidade/ambiência não serve apenas para diferenciar as músicas – e ela continuará a acompanhar a banda em sua ascensão ao longo dos anos 80 – mas também permeia boa parte das faixas de Boy. Músicas de ambiência ganham intensidade na sua evolução; inversamente, músicas de intensidade têm seus momentos de calmaria. A convivência e o contraponto entre as duas assinaturas move o álbum.

 

Embora a música do U2 não desponte como experimental, é difícil encontrar parâmetros. Mais fácil é reconhecer suas marcas. A principal é a guitarra de Edge e sua predileção pelos agudos encorpados por efeitos de pedal, tão encorpados que desafiam os limites da contenção associada com o pós-punk. O destaque que essa guitarra ganha só é possível, entretanto, pelo estilo do baixo melodioso de Adam. Larry contribui com uma batida vigorosa e marcada, com levadas que aumentam a energia das músicas. E, claro, há ainda a voz de Bono, cujo carisma nas performances ao vivo também atraem holofotes. Não esqueçamos que The Edge também participa dos vocais, em um registro que faz contraponto precioso ao cantor principal.

 

Entre as músicas de ambiência, destaque para “An Cat Dubh” e “Into the Heart”, que estão enfileiradas sem descontinuidade. “An Cat Dubh” (que recorre ao gaélico no seu título para discorrer sobre sexo) tem uma entrada arrepiante. Embora a bateria de Larry esteja lá o tempo todo, predomina o clima denso formado pelo conjunto dos quatro músicos. Já a delicada “Into the Heart” começa com baixo, guitarra e voz, ganhando corpo com a entrada da bateria.

 

Entre as músicas de intensidade, destaque para “Twilight” e o brilho da guitarra de Edge; para a regravação de “Out of Control”, que puxava o EP de 1979; para “The Electric Co.” e sua bem dosada distribuição de melodia e peso; para “I Will Follow”, a faixa que abre o álbum, a mais executada nas rádios e que mereceu o primeiro videoclipe oficial do U2. E que abertura…! É uma música “nada demais” em sua composição, mas que nos puxa pelo pescoço. O riff de guitarra é mântrico, alternando com a voz de Bono; a marcação de Larry e a base de Adam colaboram para a energia da música. Um primor da simplicidade.

 

Entre setembro de 1980 e junho de 1981, o U2 promoveu seu primeiro álbum em shows pela Europa ocidental e pelos Estados Unidos. Na terra de Tio Sam, a capa de Boy teve que ser alterada, pois a original não suportou as acusações de insinuação de pedofilia… Em um show na Bélgica, Bono comenta que o U2 existia em duas versões, a do álbum e a dos shows. Nestes, sobressaia uma faceta outsider, revelada seja por uma intrepidez que distingue o pessoal da periferia (das ilhas britânicas), seja por uma cafonice meio interiorana, meio moderna nas roupas do vocalista… Sobre as performances, importa mesmo destacar a energia que alimenta a potência das músicas. Escutemos as versões de “I Will Follow” e de “The Electric Co.” registradas em Under a Blood Red Sky, de 1983. E daremos razão a Bono acerca da existência dessa versão U2-ao-vivo, aliás bastante responsável por seu sucesso.

 

Esse registro ao vivo, que mistura canções do período coberto pelos três primeiros álbuns, inclui “11 O’Clock Tick Tock”, música lançada originalmente como single alguns meses antes de Boy. Há uma distância enorme entre a versão de estúdio e a versão divulgada em Under a Blood Red Sky. A diferença tem a ver, em parte, com a produção, que, no caso do single, coube a Martin Hannett. Hannett é o cara que contribuiu decisivamente para a sonoridade da Joy Division, banda que estava entre as influências do U2. Ele era a primeira opção da banda irlandesa para produzir Boy, mas a morte do vocalista de Manchester (que é o tema da letra de “A Day Without Me” escrita por Bono) tumultuou os planos. Para melhor, afinal, pois não há como negar que as performances ao vivo de “11 O’Clock Tick Tock” são muito superiores ao que ficou registrado no EP.

 

O desencontro com Martin Hannett é emblemático das diferenças entre U2 e Joy Division. E em 2020 lembramos tanto de Closer, o fim da linha para a Joy Division, quanto de Boy, um impulso decisivo para a longa vida do U2. Nesse sentido é que Boy pode desenhar uma seta, ainda que a trajetória da banda que o gravou seja feita de muitas curvas.

 

Mas como em toda história, nesta que conto aqui há também um círculo. Um círculo que aproxima a paisagem europeia da brasileira, o final do início deste texto. A edição nacional de Boy foi lançada no ano seguinte, mas o que quero destacar é outra coisa. Na faixa que encerra o álbum, há a participação discreta de Alice Vermeulen nos backing vocals – tão discreta que não aparece nos créditos. Alice, holandesa de 20 anos, viajava com uma brasileira pela Europa e quando estava em Dublin foi convidada para participar das gravações do álbum do U2.

 

Alguns meses depois ela viria ao Brasil para visitar essa amiga e conheceria Júlio Barroso, então às voltas com a formação da Gang 90. Pois a holandesa se tornaria a Alice Pink Pank, uma das Absurdettes da Gang 90. Em 1981, a Gang 90 lançava um compacto com duas músicas. “Perdidos na Selva” tornou-se um marco do rock anos 80. Menos conhecida ficou a outra faixa, “Lilik Lamê”, uma versão de “Christine”, música de Siouxsie and the Banshees, originalmente lançada como um single em 1980.

 

E assim voltamos ao começo, o fim deste texto reencontra seu início, e ficamos cantarolando um trecho da música-seta “I Will Follow”: “Your eyes make a circle”…

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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