Morrissey – I’m Not a Dog on a Chain

 

 

 

 

Gênero: Rock alternativo

Duração: 49 min.
Faixas: 11
Produção: Joe Chiccarelli
Gravadora: BMG

 

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

Morrissey se tornou – ou sempre foi e escondeu – um sujeito bastante questionável. Suas opiniões políticas ajudaram a turvar a perspectiva sobre sua obra e papel dentro do rock alternativo inglês feito a partir dos anos 1980. Seja à frente dos Smiths, seja em carreira solo, ele sempre foi uma espécie de porta-voz de uma geração de pessoas que sofriam com padrões sociais os quais questionavam e, a partir daí, não conseguiam alcançar. O próprio Morrissey parecia ser uma dessas pessoas que não se encaixavam e, a partir daí, disparando sua metralhadora verbal e lírica, teve seu papel. Sua adesão aos políticos de extrema direita na Inglaterra, partidários do Brexit, sua postura contra imigrantes, suas declarações recentes, tudo isso contribuiu para turvar sua imagem. O bom jornalismo manda, no entanto, que a gente exerça o papel crítico e tente separar as coisas. Pois bem, desde que “saiu do armário” do conservadorismo, Morrissey não fazia um bom disco. A espera acabou. Este “I’m Not A Dog On A Chain” é, facilmente, seu de seus melhores trabalhos no século 21, período iniciado com “You’re The Quarry”, seu álbum de “ressurgimento”, de 2004.

 

A parceria com o produtor Joe Chiccarelli já dura quatro discos e seis anos, tempo suficiente para que ambos tenham ganho entrosamento e entendimento em estúdio e na tradução das ideias. Desde que passaram a colaborar, Morrissey vem promovendo uma mudança musical importante, deixado o rock alternativo de guitarras de lado e abrançando timbres e cacoetes mais pop. Claro que o rock nunca deixará de fazer parte de seu kit artístico, mas, não por acaso, “I’m Not Dog On A Chain” é o ápice deste processo, no qual as molduras sonoras conseguem, por meio de arranjos de cordas, batidas eletrônicas, metais, efeitos, visões mais amplas dentro do processo criativo, chegar num nível em que a gente não tem qualquer dúvida de que é Morrissey cantando e compondo, mas também fica claro que é uma nova versão dele. Algo mais moderno, menos encarcerado no paradigma “roqueiro conservador amuado num quarto escuro”.

 

Temo – e falo francamente – que esta mudança de abordagem musical coincida com sua postura política. Seria uma pena, mas, por enquanto – e ainda – é hora de dar a ele o benefício da dúvida e embarcar nas águas do álbum. São onze faixas diversas, muito bem feitas, algumas com muitas virtudes. A abertura, com “Jim Jim Falls”, é um exemplo do contexto. Timbres eletrônicos, arranjo intrincado, letra sobre suicídio e um pé na porta do tradicionalismo roqueiro. O single “Bobby, Don’t You Think They Know?”, em surpreendente dueto com a cantora Thelma Houston, é um achado, tipicamente morrisseyano, porém dentro deste contexto evolutivo, que marca o atual momento da carreira do sujeito. A faixa-título, paradoxal, com arranjo que soa como uma bravata, uma declaração de intenções (I raise my voice, I have no choice, I’m not a dog on a chain, I use my brain), disparando contra imprensa, referindo-se aos jornais como “encrenqueiros”, se referindo ao tratamento que suas declarações recentes receberam da mídia britânica.

 

Uma bela canção surge no meio do álbum, “What Kind Of People Live In These Houses”, com o verso “They vote the way they vote, they dont know how to change, because their parentes did the same”, possivelmente usando a si mesmo como um exemplo que deveria ser seguido. O arranjo lembra algo que poderia ser até da carreira dos Smiths, tamanha a harmonia das guitarras e da melodia. “Darling I Hug A Pillow” é outro exemplo, mas com instrumental bem diverso, especialmente pelos metais mariacchi que pontuam a melodia e dão uma dinâmica exótica à letra de amor derramado e magoado. Daí, quando você pensa que está em território mapeado, surge “Once I Saw The River Clean”, parecendo uma canção tecnopop dos anos 1980 e “The Truth About Ruth”, típica fábula morrisseyana de fofoca e intromissão na vida alheia, com arranjo orquestral. Pra fechar o álbum, dois épicos: “The Secret Of Music”, chato e progressivoide e “My Hurling Days Are Done”, melhor e derramado.

 

“I’m Not A Dog On A Chain” é um desafio para quem tem uma visão superficial sobre arte e posicionamento político.  É um disco de afirmação de um artista notadamente conservador, misantropo e com opiniões que vão contra o que sempre significou para seu público. Superado o problema de decodificar esta dualidade de seu criador, o álbum oferece um rico panorama de um artista que se recusa a abraçar o comodismo e ainda se importa em buscar a satisfação compondo e gravando. E isso tem seu mérito, convenhamos.

 

Ouça primeiro: “What Kind Of People Live In These Houses?”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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