Moon Safari: O futuro já fez 25 anos

 

 

 

É possível que muita gente que lê este texto não estivesse aqui em 1998. Ou que ainda fosse muito jovem. O fim dos anos 1990 foram bastante peculiares em termos sonoros, especialmente porque, nos últimos dois, três anos daquela década, tivemos vários álbuns que abraçaram – tardiamente – uma noção de urgência que ia de encontro ao que soara o rock até então. Muito disso tem a ver com a incorporação da sensacional cena eletrônica vigente por artistas do chamado “rock”, especialmente os ingleses. Aliás, apenas estes fariam isso. U2, Blur, Radiohead e Spiritualized, apenas para citar uns poucos, entenderam o frescor que emanava dos trabalhos de gente como Chemical Brothers, Underworld, Orbital, The Orb, entre muitos outros grupos e projetos, que despejavam singles, remixes e álbuns. Nos Estados Unidos, via de regra, o que houve foi o surgimento de um rock mais obtuso, machistoide e que desaguaria na triste cena do nu-metal. Além dele, o pós-grunge, que continha uma grande legião de bandas sem eira nem beira, procurando algo que nunca encontraram. Os herdeiros de Seattle, Pearl Jam, Alice In Chains e Soundgarden, produziam obras relevantes, mas que foram ficando irremediavelmente datadas.

 

Neste vácuo de transições e incorporações de timbres eletrônicos, mas não só disso, surgiram artistas ainda mais revolucionários, que teimavam em sinalizar com uma ideia de futuro, que parecia esquecida pelos roqueiros vigentes. O Air estava entre eles. Formado por dois amigos de Versailles, Nicolas Godin e Jean-Benoit Dunckel, o duo lançou um álbum definitivo em janeiro de 1998, que acenou para um universo de possibilidades em meio a uma mesmice cada vez maior – e que vitimou seriamente a maioria do rock feito naquele tempo. A equação do Air era bem simples, pelo menos no papel: oferecer uma música climática, mais reflexiva, menos rápida e alta, cheia de elementos que poderiam estar em trilhas sonoras obscuras dos anos 1970, além de valorizar bandas que há muito defenestradas pelo senso comum rocker vigente, como a Electric Light Orchestra, por exemplo. E mais: um amor meio oculto e subentendido por Burt Bacharach, que havia ressuscitado alguns anos pelas mãos de um capa de disco do Oasis e inspirara grupos alternativos sensacionais, retrofuturistas, como o Stereolab ou o sueco Komeda. O fato é que não havia nada mais sensacional e instigante naquele momento do que as dez faixas que integraram “Moon Safari”, o debut do Air.

 

Na verdade, o duo já lançara um EP poucos meses antes, “Premiers Symptômes”, que já acenava para uma eletrônica mais sutil do que o batidão psicodélico inglês. O Air parecia não ter pressa, tinha muito mais a ver com o trip hop de Massive Attack e Portishead, mas usava-o como mais uma influência e não agia como alguém pertencente a este nicho. E mais: o duo não era só referências. Os dois se mostraram músicos extremamente versáteis e complementares, unindo o senso pop perdido com sonoridades instigantes. Lembro-me muito bem de ler sobre o álbum na saudosa coluna Rio Fanzine, levada por Tom Leão e Carlos Alburquerque. Faziam elogios imensos, incensavam-no como a chegada daquela peça que falta para concluir o quebra-cabeça e se perguntavam como algo podia ser tão genial. Eu não entendia o fascínio dos dois jornalistas veteranos e veneráveis pela música eletrônica, algo que só entendi com alguns anos de atraso. De fato, a música eletrônica noventista estava à frente de seu tempo. Ainda está.

 

Por essas e outras que é digno de registro o jubileu de prata de “Moon Safari”, na verdade, ocorrido ano passado, 2023, mas que o Air está celebrando agora. Uma edição comemorativa em CD duplo, com um DVD contendo a versão Dolby Atmos do disco foi lançada ontem, dia 15 de março. Além disso, há a inclusão do documentário “Eating Sleeping Waiting & Playing”, do cineasta e parceiro da dupla, Mike Mills (não confundir com o baixista do REM). Há todo um CD de novidades – algumas inéditas – nesta nova versão de “Moon Safari”. Versões alternativas, demo, mixagens diferentes e faixas extraídas de apresentações ao vivo, como “J’ai Dormi Soul L’eau”, “Sexy Boy” e “Kelly Watch The Stars”, em versões especiais transmitidas pela BBC na época. E há uma “Maggot Brain” tocada no Paradiso, em Amsterdam, em outubro de 1998. Este CD se complementa com o disco-bônus da edição de décimo aniversário, lançada em 2008, que também contém várias faixas extras sensacionais. As nossas preferidas, “Remember” e “Ce Matin La” seguem inabaláveis.

 

Além deste lançamento, o Air está na estrada. A dupla está fazendo vários shows pela Europa nos quais tocam o álbum integralmente e irão até os Estados Unidos, com várias datas agendadas – duas no icônico Beacon Theatre, em Nova York – entre setembro e outubro deste ano. Seria pedir muito que alguma produtora abnegada considerasse a vinda da dupla até aqui? Eles já estiveram em solo brasileiro em 2010 e 2016, por que não sonhar com uma trinca? Enquanto isso, ouvir e reouvir “Moon Safari” dá a dimensão exata de como o vai-e-vem sonoro e temporal pode produzir obras imunes ao passar dos anos. Constate.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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