Mateus “resgatano” o sentido do rock
Mateus Fazeno Rock – Jesus Ñ Voltará
40′, 13 faixas
(Independente)
Direto da Sapiranga, região pobre da periferia de Fortaleza, capital cearense, vem Mateus Fazeno Rock. Ele já chega com a liberdade de escrever o gerúndio como se fala por lá e em grande parte do Brasil, sem o “d”. E também chega com uma proposta audaciosa em tempos tão bicudos: resgatar o sentido e o significado do rock como um ritmo/estilo musical que tem conexões indissociáveis com a pobreza, a desigualdade, a periferia, a injustiça e a negritude. Mateus chama este movimento/proposta de “rock de favela”, ou seja, uma tentativa corajosa de diminuir a branquitude que tomou conta do estilo ao longo dos anos. Ainda lembro de uma resenha do disco de estreia do Living Colour, banda novaiorquina formada apenas por negros, publicada na Bizz, que começava com a seguinte frase: “preto não sabe fazer rock”. Foi há mais de trinta anos, mas este ponto de vista equivocado persiste aqui e ali. Pois Mateus está aí para ajudar no seu derretimento e, a julgar pelo que ele oferece em “Jesus Ñ Voltará”, seu segundo álbum, ele caminha a passos largos na semeadura desta informação nas mentes do público mais jovem, que é o que interessa.
A sonoridade que Mateus expõe em seu disco não é o “rock” no sentido raso. Não há grandes riffs, não há o instrumental padrão do estilo e, se você está esperando canções que celebram a juventude de forma banalizada e padrão, certamente “Jesus Ñ Voltará” não é pra você. As treze faixas presentes aqui são como polaróides da vida na comunidade carente, com ênfase no aspecto pessoal desta vivência, ou seja, não há generalizações de espaço ou de gente, pelo contrário. Mateus quase constroi personagens reais que vivem e sofrem neste ambiente periférico, no qual ele passou a maior parte da vida, sendo assim capaz de discorrer, criar e situar sua arte dentro dele. O aspecto psicológico das pessoas que vivem por la também é levado em conta pelo cantor e compositor, que apresenta ao ouvinte histórias da vida real, sem filtros, sem preocupações em suavizar nada. É um cotidiano duríssimo, oposto das glamurizações oportunistas que surgem aqui e ali, levadas por gente que, no fim do dia, volta para seu conforto nas regiões mais abastadas da cidade. Em certos aspectos, “Jesus Ñ Voltará” é um chute no estômago das pessoas que fazem isso.
A dureza do ambiente, no entanto, não impede Mateus de sonhar ou perceber momentos de maior suavidade/doçura. Eles surgem como temperos em narrativas que expõem um ambiente confrontado e conflagrado, onde se trava uma guerra. Sendo assim, canções como “Nome de Anjo”, que mostra um quase romance tornado impossível pela necessidade de trazer o sustento da rua pra casa e, a partir daí, por uma tragédia – que a letra não explora completamente, apenas deixa subentendida – ganham em drama e realidade. Esse também é o caso da ótima “Melô de Aparecida”, que fala da violência infantil, tanto da cidade quanto da (ausência de) família. As paisagens são pintadas com tanta realidade e sinceridade que é inevitável o choque, o pasmo, o desconcerto por parte do ouvinte que não vive neste lugar, mas entende que ele é fruto de uma desigualdade cruel que insiste em existir numa sociedade que não abre mão de privilégios sedimentados por séculos de injustiça social.
O disco não é apenas uma ferramenta de denúncia da injustiça, ainda que essa seja sua principal característica e mérito. Há momentos de genialidade do artista, seja na ótima construção de climas, arranjos e levadas, mas, sobretudo, pela letra, como acontece, por exemplo, em “Indigno Love”, na qual Mateus vai subvertendo as palavras, partindo de “love song” para chegar em “lave o sangue”. Em “Pose de Malandro/Me Querem Morto”, o tal “rock de favela” incorpora naturalmente o batidão do funk, mas sem abrir mão do conceito que norteia a própria obra de Mateus, a de um “rock” bem informado, que se apropria das influências de onde quer que elas venham. “Pode Ser Easy”, por sua vez, investe numa levada que traz influências do funk setentista, com um arranjo belo, cheio de ótimas vozes de apoio e uso de teclados e programações. Até nos menores detalhes, o álbum oferece belezuras para quem está atento, como na curtinha “Rezo”, que tem um andamento reggae que poderia aparecer com mais força ao longo do disco.
“Jesus Ñ Voltará” é uma cacetada na orelha. É rico, real e necessário, sem abrir mão de um virtuosismo artístico inevitável, que reveste e conceitua a obra de Mateus Fazeno Rock, sem dúvida, um dos grandes acontecimentos musicais de 2023. Não por acaso, ele estará no Primavera Sound de São Paulo, no mesmo dia que medalhões como Beck ou The Cure.
Ouça primeiro: “Nome de Anjo”, “Melô de Aparecida”, “Indigno Love”, “Jesus Ñ Voltará”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.