Canções de Caetano renascem com ótimos arranjos e criatividade

 

 

 

 

Xande Canta Caetano – Xande de Pilares
34′, 10 faixas
(Uns)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

A recente notícia de que Caetano Veloso “chorou como criança” ao ouvir a versão de “Gente”, feita por Xande de Pilares, tem aspecto dúbio: ao mesmo tempo em que divulga e chama a atenção para a nova incursão do ex-vocalista do Grupo Revelação ao lançar um álbum composto apenas por canções do velho compositor baiano, também restringe a informação apenas a este aspecto. O leitor e o ouvinte médios podem pensar que este é um álbum de gosto duvidoso em que canções clássicas do repertório de Caetano são vertidas para o pagode dos anos 1990/2000, julgando o produto pelos aspectos mais enganosos e óbvios. Creia, nada pode ser mais injusto, pois este álbum é uma pequena e inesperada jóia do trabalho em estúdio, com criatividade surpreendente e cheio de surpresas ao longo de suas dez faixas. A única injustiça aqui é não dar o crédito no título ao responsável por isso: Pretinho da Serrinha.

 

 

Não que Xande não seja um bom cantor, ele é. Sua voz é grande, potente, ele tem noção do que faz e sabe cantar, mas, nas mãos de um outro arranjador ou produtor, talvez tivéssemos um trabalho muito inferior. Pretinho, que trabalha com Marisa Monte há tempos, mostra que tem uma vasta noção de ritmos, nuances e detalhes, sendo capaz de conferir brilho e profundidade em vários momentos do álbum, a tal ponto que, repito, sem ele, esta realização, possivelmente seria confusa e rasa. Para quem pensa que a obra de Caetano nada tem a ver com o samba, sugiro que vá e volte no tempo e se permita ver como o baiano tem apreço pelo ritmo. Sua versão de “É Hoje”, gravada em 1983, no álbum “Uns”, deu nova dimensão ao samba-enredo da União da Ilha do Governador, que fez sucesso imenso no ano anterior. Em “Tropicália 2”, lançado em 1994, ele e Gilberto Gil assinaram um dos mais belos exemplares do samba moderno, “Desde Que O Samba É Samba”, além de várias outras confluências, participações e flertes. Caetano não é um estranho ao metier do samba e a tradução de sua obra para ritmos afro-brasileiros é absolutamente natural.

 

 

Falamos de “afro-brasileiros” porque dizer que este é um disco “de samba” ou, pior, “de pagode”, torna-se um equívoco total. A exuberância dos arranjos de Pretinho abre espaço para incursões em vários caminhos rítmicos, inclusive, além do Brasil, quando ele e Xande recebem Hamilton de Holanda para uma versão arrasa quarteirão de “Qualquer Coisa”, vestindo o clássico caetânico de 1975 como se fora um bolero e levando-o para passear por dancings decadentes de uma boemia carioca que já se foi. Em todas as dez faixas, os arranjos se destacam, sem espaço para exageros ou equívocos, dando sempre uma nova dimensão aos originais. Em “Trilhos Urbanos” (minha canção preferida de Caetano em todos os tempos), Xande e Pretinho acrescentam um ritmo ijexá, e colocam “O Retirante”, de Dorival Caymmi (canção tema da novela “Escrava Isaura”) como música incidental, praticamente recriando a gravação original, de 1979, com um resultado inesperado e surpreendente.

 

 

Evitando as canções mais óbvias, o álbum tem duas escolhas sensacionais, que ficaram famosas na voz de duas das intérpretes mais conhecidas da obra de Caetano: “O Amor”, que ganhou vida com Gal Costa em seu álbum “Fantasia” (1981) e “Diamante Verdadeiro”, que foi gravada por Maria Bethânia em seu álbum “Álibi” (1979). Além delas, “Lua de São Jorge” recebe um toque de alvorada em seu início, conectando-a ao aspecto mais mítico da figura do Santo Guerreiro, enquanto “Muito Romântico”, uma das mais belas obras de Caetano, ganha um tratamento elegante de samba clássico, com ares djavanescos. Também há uma aura parecida em “Luz do Sol”, que, originalmente era uma homenagem à bossa nova e que conserva este aspecto, mas de uma forma renovada e bela. “Alegria, Alegria” e “Tigresa” também ganham novos ares, a primeira também como ijexá, a segunda como um samba narrativo e moderno, com ótimas intervenções de metais e sopros. E “Gente”, a canção que ilustrou o choro de Caetano, emocionado com o resultado final, virou um samba enredo, um samba de quadra, algo grande, enorme, para caber todo mundo, numa interpretação beneficiada pelo tamanho da voz de Xande, que, insere suas próprias menções pessoais em meio às citações originais da canção.

 

 

“Xande Canta Caetano” é um discaço. Tem coragem para mexer com clássicos da música brasileira de um jeito arrojado e, ao fazer isso, transporta essas canções para um público novo, que não as conhece, mas que pode amá-las com força. Bola dentro.

 

 

Ouça primeiro: “Trilhos Urbanos”, “Gente”, “Qualquer Coisa”, “O Amor”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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