Mark Lanegan morreu e eu não disse nada

 

 

Este título se explica por um motivo, digamos, geográfico. Quando soube da morte do cantor e compositor americano, eu me encontrava dentro de um ônibus da Itapemirim, em algum ponto do trajeto entre Fortaleza e Niterói. Notem que os carregadores de celular não funcionavam a bordo deste veículo, algo que me impunha um racionamento ferrenho de bateria. Logo, não havia condição apropriada para esboçar um texto. E agora, dois dias depois da chegada, às voltas com a faxina da casa – que ficou fechada um tempão – encontro meios para lembrar de Lanegan, ex-vocalista do Screaming Trees e artista solo bem interessante. Além de solo, Mark colaborou com um monte de gente, teve uma vida dura por conta de uso abusivo de drogas, o que terminou por levá-lo aos 57 anos, em sua casa em Killarney, na Irlanda, onde vivia com sua esposa, Shelley. O motivo da morte não foi divulgado.

 

Sendo assim, para lembrar Mark, resolvi resgatar duas resenhas que fiz para o Monkeybuzz em 2013 e 2014, para os álbuns “Imitations” e “Phanton Radio”, respectivamente. O primeiro, inclusive, é um dos meus trabalhos mais queridos da carreira solo do sujeito, uma coleção de covers inesperadas, gravadas apenas com um invólucro acústico, na base do voz e violão, com resultados surpreendentes e cativantes. Vamos ler e recordar de como Lanegan, ainda que tenha permanecido nas sombras, foi um dos vocalistas mais importantes surgidos nos anos 1990, talvez tanto quanto Eddie Vedder, do Pearl Jam.

 

 

 

Mark Lanegan – Imitations (2013)

Novo disco soa sincero durante toda sua duração, adquirindo um tom confessional e pungente

Selo: Vagrant
Faixas: 12
Estilos: Rock
Duração: 41:28
Produção: Mark Lanegan

 

 

Mark Lanegan goza de um grande prestígio junto ao público de Rock Alternativo, mais precisamente, daquele pessoal que aprendeu a amar bandas como Queens Of The Stone Age. Não por acaso, uma vez que Lanegan emprestou sua presença e voz ao disco mais popular do Queens, Songs For The Deaf, lançado em 2002. Antes disso, o roufenho cantor era o ex-integrante soturno do Screaming Trees, formação dos arredores de Seattle, que teve brevíssimo momento de sucesso no início dos anos 90, quando lançou um disco chamado Sweet Oblivion. Com razoável rotação em rádios alternativas do mundo, o trabalho do Screaming Trees foi enquadradado – erroneamente – na onda Grunge, chegando a fazer parte da trilha sonora com seu maior sucesso, Nearly Lost You.

 

Os Trees nunca foram uma banda regular, seu novo trabalho só viria em 1996 e seria o último, Dust. Lanegan já iniciara uma carreira solo e investiu nela a partir do fim da banda. Lançou discos difíceis mas interessantes até se juntar ao Queens e assumir papel de destaque no início do milênio. Fez três discos com Isobel Campbell, ex-Belle And Sebastian, outros três em parceria com Greg Dulli (Afghan Whigs/Twilight Singers) sob o nome de Gutter Twins e colaborou com uma grande variedade de gente, de Massive Attack a Slash. Em 2013, Lanegan resolveu lançar um disco de covers, Imitation.

 

A ideia é simples: cantar o que ele ouvia no rádio de casa e nos discos que seus pais tocavam na vitrola da sala. O repertório traz uma grande quantidade de canções dos anos 60 e 70, muitas delas de artistas que acabaram por influenciar Lanegan, além de algumas canções mais recentes. Há sucessos inesperados como You Only Live Twice, talvez a melhor canção de 007 já feita, sucesso na voz de Nancy Sinatra, devidamente despida de seu instrumental original numa versão voz e violão. Também temos Mack The Knife, um verdadeiro clássico dos anos 50/60, cantado por grandes mestres como Sinatra, mas famosa na voz de Bob Darin. Novamente a versão de Lanegan – como todo o álbum sugere – despe o arranjo original para atingir a secura do instrumental acústico. Também há uma simpática versão para o sucesso setentista de Hall And Oates, “She’s Gone”, e o standard Autumn Leaves, além de uma revisita ao repertório de Nick Cave, em Brompton Oratory e dos Twilight Singers, com Deepest Shade.

 

Imitations é interessante e soa sincero o tempo todo. A voz de Lanegan parece a de um discípulo aplicado de Tom Waits, prometendo mais rouquidão e sofrimento no futuro, desde que ele siga caminhando e se equilibrando nas linhas tênues que separam o lado negro da Força dos outros referenciais. Para os fãs, uma coleção confessional e pungente.

 

Publicado em 17 de setembro de 2013 (link)

 

 

 

 

 

Mark Lanegan Band – Phantom Radio (2014)

Novo álbum do artista mistura anos 1980 e escuridão

Ano: 2014
Selo: Heavenly Records
Faixas: 10
Estilos: Rock, Rock Alternativo, Eletrônica
Produção: Alan Johannes

 

 

Mark Lanegan se especializou a fazer uma atualização pós grunge de uma certa sonoridade praticada por Johnny Cash. Esta foi a interessante a definição que o jornal inglês The Guardian fez sobre a carreira do ex-vocalista de Screaming Trees, e dono/participante de vários projetos secundários bem legais. Os ingleses não estão errados, pelo contrário. A própria imagem de Lanegan, a associação entre tortura da vida com exorcismo de vícios e maldade através da música é fruto dessa mistura entre passado e presente. A natureza aventureira do sujeito em termos de criatividade e ritmo de trabalho fornece a parte final de equação: Mark é um workaholic, que pensa no presente como meio de atingir a salvação que só o futuro e a certeza de sua existência podem fornecer. Como faz parte de seu identikit musical/comportamental, é melhor conseguir tudo agora mesmo, pois o amanhã é, certamente, pior. É estranho, mas a danação e a crueza da vida alimentam a música de Lanegan e seus ouvintes gostam deste safari pelo lado negro da Força. Com ele no papel de guia. É como ser perseguido pelo robô de Yul Brinner no parque de diversões deserto daquele filme Westworld – Onde Ninguém Tem Alma. Se não viu, veja.

 

A Mark Lanegan Band é composta por ele e Alain Johannes, multiinstrumentista e produtor de gente como Queens Of The Stone Age, Chris Cornell e Jason Falkner. Johannes pilota o estúdio e assume a execução de vários instrumentos, além de fornecer o conceito para o álbum: uma viagem pela noite com sonoridade Tecnopop oitentistas dosadas e mantidas sob controle para não desandar a alquimia entre essa abordagem e a escuridão de Lanegan. O resultado não pode ser classificado como “leve”, mas está longe de ser estranho ou antipop. A eletrônica programada por Johannes funciona discretamente e a presença de Lanegan confere o certificado de qualidade que Phantom Radio precisa. Lanegan também cooperou nesse sentido, mostrando esboços das canções, feitos a partir de um aplicativo para smartphone.

 

Há timbres intencionalmente datados por todo o disco, mas o início, com Harvest Home lembra mesmo alguma canção deixada de lado por The Byrds no início dos anos 1970. A batida eletrônica desavergonhada (no bom sentido) e os teclados espaguete pontuam a canção. Judgement Time é sofrida e rastejante, apenas com a cama de sintetizadores vintage fazendo companhia para a voz roufenha de Lanegan falar sobre o fim da linha num romance empoeirado qualquer. Floor On The Ocean parece alguma banda de adolescentes americanos tentando criar uma canção do Genesis de 1982. A voz de Lanegan é o contraponto para a sonoridade intencionalmente amadorística, novamente bem engendrada por Johannes. The Killing Season tem mais timbres datados de bateria e guitarra mas a negritude retorna no Blues estilizado e sintético que é Seventh Day.

 

I Am The Wolf é um lamento estradeiro ao por do sol, cheio de nuvens sinterizadas e instrumental dramático. Torn Red Heart, grandiosa e espaçosa, é um aceno involuntário de Lanegan às produções de Phil Spector e seu wall of sound. Waltzing In Blue é outra homenagem à estética oitentista de canções pop, com palmas sintéticas e tudo mais, abrindo caminho para The Wild People, novamente se equilibrando entre a canastrice musical deliberada e a profundidade do drama que Lanegan sugere. O grande momento do álbum está em seu final. Death Trip To Tulsa não tem nada de engraçado ou curioso. É marcha suicida no meio da noite, exorcismo de demônios do passado, tentativa de desatar nós do presente e uma neblina dos filmes de Stephen King no horizonte. É Lanegan, sem firulas.

 

A tentativa de usar timbres e estéticas oitentistas é válida e inusitada em termos de Mark Lanegan. O resultado é bom, apesar de não ultrapassar o limite da curiosidade na maioria das vezes. Sabemos que ele é capaz de mais e que estará de volta em pouco tempo, com mais um atestado de vida em forma de feixe de canções.

 

Publicado em 22 de outubro de 2014 (link)

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Mark Lanegan morreu e eu não disse nada

  • 15 de fevereiro de 2023 em 17:08
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    Sensacional. Ótimas críticas. Logo completa um ano que perdemos esse grande artista. Ele foi espetacular, especialmente em Whisky for the Holy Ghost e Bubblegum. Mas também em outros LPs do início da carreira. Imitations é muito bom, mas o outro de covers dele é ainda melhor, I’ll Take Care of You. As parcerias são em geral excelentes. Enfim, RIP e obrigado pelo legado, Lanegan

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