Leoni – Muito Além da Música – Parte 2

Fizemos uma entrevista tão legal com o Leoni que decidimos não editá-la. O que você lê é o que foi dito, integralmente. Mas precisamos dividir. A primeira parte você leu – e lê – aqui.

Aqui está a segunda – e última – parte dessa conversa tão boa.

 

– Como você vê o primeiro disco do qual você participou, o “Seu Espião”? Como você vê ele hoje em dia?

Pra tocar as músicas do show que eu estou fazendo com o Léo Jaime, eu precisei ouvir de novo pra me lembrar dos arranjos porque nós decidimos voltar pros arranjos originais, voltar a tocar baixo… Eu acho ele muito legal. Apesar de ser um disco pop, ele tem umas músicas muito estranhas, “Fixação” é uma coisa estranha. “Como Eu Quero”, “Seu Espião”, que fala sobre ciúme…A gente resumiu no segundo disco o que foi o “Seu Espião”, uma educação sentimental, da gente passando da adolescência pra fase adulta em público. Tem muitas coisas pueris ali, mas que são legais. É bacana continuar cantando isso porque todo mundo, em algum momento da sua vida, passa por isso. O Renato Russo falava que o Renato Manfredini ia envelhecer, mas o Renato Russo ia ter, no máximo, 27 anos. Porque ia ter uma hora em que ele ia dizer que o mundo adulto não é aquilo que se esperava. Tipo “é isso? Eu vou ter que trabalhar de terno e gravata, eu vou ter que usar essas convenções?”. O “Seu Espião” tem essas coisas em relação não à política e tal, mas sobre sentimentos…Eu tive que rever tudo, a gente tá tocando “Nada Tanto Assim”, que é uma música que tem mais a ver com os dias de hoje do que quando foi composta…A gente até pensou em atualizar a letra, porque tem um monte de coisa que não existe mais: “Crítica do Leitor”, o próprio Jornal do Brasil…A gente – eu e o Leo Jaime – toca “Fixação”, “Como Eu Quero”, “Pintura Íntima”. Ele foi um disco muito importante, a partir dele as
pessoas perceberam que eu era um compositor de música pop. Sete músicas dele tocaram nas rádios. Tocaram e chegaram ao primeiro lugar. Como compositor e artista, eu prefiro o que veio depois, o “Educação Sentimental”, que veio depois. A gente estava sem baterista, porque o Beni (Borja, primeiro baterista do grupo) não fazia mais parte. O Serginho Herval, do Roupa Nova, tocou algumas músicas no estúdio e a gente também usou muita bateria eletrônica. Na turnê que veio depois do Rock In Rio, o Claudio Infante veio tocar com a gente.

 

– Muitas bandas daquela época dizem que os discos sofriam muita interferência de gravadora e tal. “Seu Espião” teve algo assim?

Não. A gente deu sorte. Fizemos uma produção com o Lulu Santos no primeiro compacto, ele adorava a gente. Ele só chegou e sugeriu alguns vocais e tal. E depois, com o Liminha – que tava começando, ele ainda não tinha o Nas Nuvens – também. Ele alugou uma casa no Recreio dos Bandeirantes (Zona Oeste do Rio), grande, com piscina e colocou toda a aparelhagem de gravação dentro dela. A gente acordava – a gente morava na Urca, era longe pra cacete – e ia pra lá. E ficava o dia inteiro. Eu sempre fui muito interessado por estúdio. Então ficava lá o tempo todo, tinha as baterias eletrônicas, a gente explorou muito. Teve uma história do Kid Abelha que só foi resolvida depois da minha saída, que foi a parte de composição do George Israel. Eu compunha muito sozinho e com a Paula, mas o George não compunha com ela. Eu e ele compúnhamos juntos, por exemplo, “Lágrimas e Chuva”. Ele tinha uma coisa mais R&B e a gente tinha uma coisa mais pop/rock, a parte de composição dele ficou um pouco reduzida e tinha um certo desconforto nisso mas eu me sentia como se estivesse na Disneylândia. Tudo o que eu imaginava e trazia, o Liminha incorporava. Ele era um cara muito atento com o que tava acontecendo. Quando ele e o Lulu foram ouvir o nosso repertório, o Lulu disse: “como eu queria escrever letras assim”…E isso impressionou o Liminha. Até as coisas que a gente queria copiar – “Como Eu Quero”, que tem divisões de bateria e baixo iguais às de “Save A Prayer” – ficavam boas. As pessoas perguntavam “de onde vem esse arranjo?”. A gente “copiava mudando”. Eu não era um
super músico, mas eu ficava caprichando, pensando nas linhas de baixo. Isso tinha uma cara. O Picasso dizia: artistas medíocres copiam, artistas geniais roubam.

 

Agora você voltou a tocar baixo. O período que você passou tocando mais violão não te levou a querer gravar mais guitarra e violão do que baixo?

Sim. Eu gravei guitarras no “Notícias de Mim”, eu cheguei a gravar solos, no show eu fazia solos. Eu fiquei sem tocar baixo, guardei o baixo por um bom tempo. Voltei a tocar baixo por conta do show com o Léo Jaime. Agora tou animado, tocando pra caramba.

 

E como estão esses shows com o Léo?

A gente ainda tem convites. Fizemos muito Rio e São Paulo, Belo Horizonte, Vitória, alguns lugares no Nordeste. Também tenho feito uns shows com violão e voz, às vezes tem pedido de shows em lugares maiores, daí eu venho com a banda que me acompanha. Passei um tempo fazendo o show Multiversos, eu queria falar de poesia contemporânea, tinha projeção e tal. Passei um tempo certo de que era isso que eu queria fazer. Agora estou pensando no que eu quero fazer agora.

 

Sobre o Educação Sentimental, eu queria perguntar pra você, diretamente, como você conseguiu compor uma letra como “Os Outros”? Eu acho “Garotos” bastante importante, ambas mostram que você tem a habilidade de escrever na figura feminina. Como veio isso?

Eu tinha que pensar um pouco desse jeito porque a cantora era a Paula, né? Precisava pensar em algo que seria legal pra ela contar. “Garotos” ela começou e eu fui na onda, pensando como ela. As primeiras músicas tinham o ponto de vista masculino, por exemplo, “Pintura Íntima”, com “eu tô seco, eu tô molhado” e ela cantava. Aí tinha essas duas possibilidades: inventar adjetivos sobre a questão do gênero ou eu pensava como ela. No caso de “Os Outros”, a gente tinha terminado e eu sabia que, por conta da importância que a gente teve na vida um do outro, por mais que a gente tivesse outros relacionamentos, seríamos uma coisa muito marcante na vida um do outro. Poxa, a gente tinha construído uma banda. Por mais que a gente tivesse outros relacionamentos, ia ser assim. Eu sabia que não ia ser assim pra sempre, nos próximos 20, 30 anos, mas por um tempo, seria assim e eu sabia que ela pensava desse jeito. E aí foi essa a ideia, foi quase um recado pra ela, não interessa quem você vai encontrar agora. É como se fosse “Detalhes” ao contrário, só que, em vez de eu dizer isso pra ela, fazia com que ela dissesse pra mim. O Leo Jaime diz: “esse cara é um gênio: como ele escreve uma música pra ex-namorada cantar pra ele e … ELA CANTA!”. Muita gente fala que é a música predileta e tal, tem muito disso. Ela nem chegou a tocar muito no rádio, mas ela é bem conhecida. Eu tava falando da minha experiência, tudo você compara num novo relacionamento após um outro mais longo.

 

– Você tem preocupação de estudar pra fazer alguma canção? Sobre algum tema que você deseje abordar?

Não, eu acho que tem mais a ver com o formato. Sobre a elaboração mesmo. Não muito sobre a letra, mas eu nunca componho melodia e letra juntos. Às vezes sai um pedaço de letra ao mesmo tempo. Com o Hipopótamo Alado está acontecendo mais assim, de ter um tema, um assunto que vai norteando a ideia. Tem uma letra que foi inspirada em “Paisagem da Janela” (do Lô Borges e do Fernando Brant), sobre o que a gente vê da nossa janela, da sua janela. E aí eu escrevi também a partir de outras canções, como “Geleia Geral”, “Expresso 2222”, começo daqui, vou pra algum lugar. Também rola de me inspirar numa canção minha mesmo, tipo “A Fórmula do Amor”, que eu reescrevi agora, atualizando. Essa coisa do amor romântico é muito prejudicial aos relacionamentos, essa coisa de encontrar a metade da laranja, que é uma metáfora péssima. Cortou a laranja, ela começa a apodrecer, né? Essas coisas de “estava escrito nas estrelas”, o “the one”. A pessoa desenhada nas estrelas, que vai te completar. Ninguém nasceu pra completar ninguém, pra tentar ser feliz.

 

– Os parceiros entram em que momento? Compõem junto, entram nessas discussões? Rola papo sobre a letra?

Depende. Tem parceiro que tem separação total. Eu faço a letra, o cara faz a música, vice versa. “Soneto Do Seu Corpo”, foi assim: eu escrevi a letra e dei pro Paulinho Moska compor a melodia. A Zélia Duncan só escreve letra. Com o Frejat já é o contrário, ele não faz nada se não tiver uma letra escrita. “A Chave da Porta da Frente” foi assim. Aliás, a história dessa música é muito estranha, eu compus a letra pra outra melodia. A história dessa música é muito estranha, eu compus a letra pra outra melodia.

 

– Conta essa história pra gente?

Bem, eu tava muito fodido no início dos anos 2000. O Liber Gadelha – produtor – tinha um selo na época e ia lançar o segundo disco de uma banda chamada Cabeçudos. Alguém na Rádio Cidade havia dito que era a boa hora deles lançarem algo novo porque o Charlie Brown Jr ia entrar de férias. Os caras tinham passado a vida toda para compor e lançar um disco de estreia com dez músicas. Agora tinham, sei lá, dois meses, pra lançar outro disco com dez músicas. Eles fizeram dezessete músicas, fracas, dessas, dez eram no máximo fracas. Daí, eu, completamente fodido, fui contratado para ser uma espécie de “song doctor” da banda, pra dar um jeito nas canções. Eu disse que não dava, que, no máximo, daria pra fazer cinco, eu escrevendo as letras e tal. Então eu escolhi e eu pensei que poderia reescrever. Eu lia as letras dos caras, as coisas não faziam o menor sentido. Eu perguntei pro cara: “cara, o que é isso aqui?” Ele me respondeu: “cara, quando eu escrevi, eu sabia, agora eu não lembro mais”. Então eu pedi para escrever outra letra, porque aquela não dava. Eles eram hardcore. Se fosse música de amor, tinha que ser porrada, não podia ser levinha. Então em pensei num cara cortando os pulsos, uma coisa assim. Eu escrevi, dei pro produtor e o cara disse: “Caralho, cara! Não dá pra entrar, é muito diferente do resto, muito acima das outras”. Os caras disseram: “nosso público não vai entender”. Eu fiquei puto, tinha dado um puta trabalho, era uma melodia estranha e tal. Eu peguei a letra e dei pro Frejat. Ele fez outra melodia e gravou. Depois eu gravei.

 

– Aliás, por falar nisso, você teve problemas de grana nos anos 1990, né?

Nos anos 1990 até 2004. O disco que tem “Garotos II”, da EMI, é de 1993, mas só começou a tocar em 1994 por causa de uma novela. A música tocou pra cacete mas o disco vendeu pouco. A gente ia passar pra segunda música, escolhemos e tal, mas uma outra novela queria uma terceira música. Pegamos o dinheiro, que já havia sido gasto pra fazer clipe e tal, e não tinha mais pra promover a terceira música pra tocar na novela. Não tocou. O personagem havia sido alterado, era um médico, de uma família rica, que ia ficar fodido e tal. Daí não ficou. A música, que era “Carro e Grana”, só tocou em versão instrumental, nunca tocou uma frase da letra. Então a música não foi trabalhada. E veio a EMI: lançar outro disco, esse ficou velho. Eu falei: “cara, a gente só trabalhou uma música, tem várias outras…” e os caras responderam: “se você não tá satisfeito, pode ir embora”. Então, a partir de 1994/95, eu fiquei sem gravadora e com a pecha de que tocava mas não vendia. As portas se fecharam, nenhuma outra gravadora me quis. Eu fui gravar o meu disco de 2002 com dinheiro próprio, oito anos depois disso. Então eu fui na Som Livre, com a ideia de regravar minhas músicas antigas, com violão e voz e tal. Daí veio o disco “Auto-Retrato”, em 2003, e eu comecei a voltar. Então eu digo: o que eu mais fiz nos anos 1990 foi dívida. (risos).

 

Engraçado porque “Carro e Grana” é de 1993 e tudo isso aconteceu depois…E antes.

Sim, porque ela fala do meu tempo depois do Heróis da Resistência. A gente gravou o segundo disco dos Herois, o “Religio”, em Los Angeles. A gente gastou muito dinheiro lá, o Liminha morava em Los Angeles. A gente saiu detonando dinheiro por lá. Pra você ter uma ideia, a gente gravou no Ocean Way, o mesmo estúdio em que o Michael Jackson gravou “Thriller”. Ou seja, existem vários estúdios ótimos em Los Angeles, a gente gravou no mais fodão. Ele era todo vintage, todo analógico. Era o tempo do inicio do digital, então o Liminha resolveu alugar o digital pra comparar. Foi assim, uma destruição de grana. Então, no disco seguinte, a gente não tinha orçamento nem pra gravar. Quem produziu foi o Ricardo Garcia, que, na época, era o técnico de manutenção do Nas Nuvens. Depois ele virou o cara de masterização por lá, mas ele nunca tinha produzido. A gente não tinha orçamento pra nada. Então, os Heróis tinham feito muito sucesso no primeiro disco, com músicas como “Esse Outro Mundo”, Nosferatu”, “Só Pro Meu Prazer”, “Dublê de Corpo” e, a partir do segundo, sumiram. A gente já estava fodido, fazendo poucos shows e tal. Eu entrei na EMI e não teve qualquer adiantamento, eu gravei o primeiro disco solo em casa. Então houve essa coisa de tocar e não vender. Eu fui morar em Vargem Grande (bairro da Zona Oeste do Rio), gastar menos … tava foda. A coisa só melhorou com o “Áudio- Retrato”, num esquema de guerrilha. A gente montava e desmontava tudo, eu e o Daniel Lopes, que tocava guitarra comigo no show. Não tinha técnico, roadie, nada. A gente montava e desmontava. Foi muito bem e isso me levou para o DVD ao vivo, e as coisas começaram a voltar.

 

– Então quando você olha pra essa coisa de gravar novo disco, lançar e tal, você não olha mais pra gravadora. O teu plano é continuar independente e produzindo o próprio disco.

Isso, não olho. E nem falo de lançar disco, pode ser uma faixa, outra. Eu e o Léo lançamos duas faixas. A gente sabe que não vai tocar demais, nem é essa ideia. A gente chega num ponto em que não tem mais a urgência de fazer um disco. Isso me faz só compor quando eu tenho vontade de falar de alguma coisa, aquela coisa de parar pra pensar no que eu quero fazer. Por exemplo, eu fiz umas versões para o show Multiversos que eu gostaria muito de gravar e colocar na rede. Algumas coisas legais foram feitas ali. Acho que isso pode ser uma boa coisa pra fazer num futuro próximo. Também tem canções minhas com a banda, as coisas com o Leo, que podem se transformar em alguma coisa maior, pra ir soltando aos poucos. As pessoas se interessam por material novo. Também tem seis canções inéditas com o Frejat, que foram pra um filme, que poderiam ser lançadas também. As músicas estão gravadas e masterizadas. Eu dei muita sorte nos anos 1980. Tinha uma gravadora e isso era tudo. Hoje você pode gravar, é tudo muito mais democrático e possível, mas é muito mais difícil pra fazer uma carreira. É paradoxal, né? Só se toca um tipo de música, mas se grava mil tipos de música. Melhor você radicalizar com o seu público do que “tornar as coisas mais comerciais”. Se você não está no mainstream, você chama mais atenção pela diferença.

 

Participou Ricardo Benevides

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

5 thoughts on “Leoni – Muito Além da Música – Parte 2

  • 8 de junho de 2019 em 21:42
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    O Leoni é um monstro. Um compositor incrível. É engraçado como todos conhecem as músicas dele, mas quando você menciona o nome, nem sempre as pessoas sabem de quem você está falando. Não entendo desse assunto, mas creio que o Leoni nunca teve um bom agente que administrasse a sua imagem. É o contrário do que acontece hoje com artistas “de modinha” que todos já ouviram falar, principalmente com a proliferação (contaminação?) nas redes sociais, mas não tem nem ideia das músicas e menos ainda se estes compõem ou só interpretam.

    Preciso me atualizar em relação aos trabalhos mais recentes do Leoni e ficar atento, gostaria muito de ir a um show em SP/SP.

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  • 8 de maio de 2019 em 19:27
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    Tem poucos meses que comecei a ouvir as músicas do Leoni e estou apaixonada, encantada pela mente dele!!! A voz dele então, junto com as letras incríveis formam uma composição perfeita!!! Todas as músicas que já ouvi me agradam muito, e agora estou lendo mais sobre o início da carreira dele, sendo assim essa entrevista cai como uma luva, excelente!!!

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    • 8 de maio de 2019 em 21:30
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      Opa, Maravilha, Lilian! Não deixa de conferir a primeira parte do papo, foi ótima.
      Abraço e volte sempre à Célula.

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  • 7 de maio de 2019 em 12:01
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    Muito boa a entrevista. Fui até ouvir as músicas citadas para relembrar.

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    • 7 de maio de 2019 em 12:21
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      Obrigado, Marcelo! Não podia editar nada dessa conversa, ela vale ouro. Obrigado!

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