Lee Fields & The Expressions – It Rains Love

Gênero: Soul
Duração: 40 min
Faixas: 11
Produção: Leon Michels
Gravadora: Big Crown

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

Há uma cena em “Perfume de Mulher” na qual o militar cego, vivido por Al Pacino, diz para o seu cuidador pósadolescente, interpretado por Chris O’Donnel: “I’ve benn around, you know?”, grita ele, após algum erro cometido por O’Donnel. Este termo significa “eu já estive por aí” ou “eu estou na ativa faz tempo”, ou ainda “eu já vi muita coisa nessa vida”, se levarmos em conta a tradução livre, sem compromisso literal. Penso nisso quando ouço gente como Lee Fields. Eles – e os finados Charles Bradley e Sharon Jones – estão e estiveram aí há bastante tempo, suaram a camisa na seara da música, em especial, da soul music, um mercado mais complexo do que a maioria, e adquiriram quilometragem, casca, experiência. Sofreram, lutaram e só conseguiram alguma visibilidade quando já estavam na casa dos “enta” anos. Lee Fields é isso e seu novo disco, “It Rains Love”, marca a continuidade de seu estilo.

Nascido em 1951, o homem está no ramo desde 1969, na esteira dos gigantes – Wilson Pickett, Otis Redding, Marvin Gaye, Curtis Mayfield – e só conseguiu sua merecida visibilidade nos anos 00, quando a soul music começou a passar por uma revalorização e produzir novos representantes. A trinca supracitada respondeu a este chamado e passou a inspirar novos artistas. No caso de Fields, este é seu quinto disco em dez anos, mostrando que o sujeito tem uma carreira e sabe disso. Sua trajetória de vida oferece algo que a experiência com a soul music exige: cicatrizes da vida. É muito mais confiável a dor e a felicidade de alguém que já não sorri completamente e, assim como o blues, a soul music se mostra mais completa e crível quando nos coloca diante de um intérprete que transpareça essas vulnerabilidades. Lee Field oferece tal perspectiva com gentileza.

Em termos musicais, “It Rains Love” consiste num belo ramalhete de canções que partem do instrumental tradicional do soul padrão Stax/Volt, com muitos metais, proximidade com o  R&B mais clássico e grandes performances vocais. Não há muito espaço para outras pinceladas sonoras e Fields consegue escapar das acusações de não oferecer nada com a cara dos nossos tempos ao recrutar o talentoso band leader e produtor Leon Michels, com quem trabalha há tempos. Michels se incumbe de revestir os arranjos com pequenos detalhes eletrônicos, samples, timbres, influência discretíssima de batidas hip-hop, ou seja, ele traz a sonoridade de Fields para os nossos atribulados dias, conferindo urgência e lastro às interpretações.

Entre as belezuras contidas aqui, destacam-se a faixa-título, exuberante em sua lindeza e intensidade; as cordas e backing vocals de “Will I Get Off Easy”; a levada psicodélica de “A Promise Is A Promise”, o arranjo solene de “Love Is The Answer” e o otimismo comovente de “Don’t Give Up”, mostrando que Lee tem amores e devoções multidimensionais, que vão além da carne, mas que nunca contaminam sua narrativa, dando a ele uma isenção que é bem vinda. Ele não é um cantor gospel, mas entrega uma performance condizente.

O novo disco de Lee Fields é mais uma confirmação de como esta cena soul vintage de hoje, seja com novos artistas, seja com veteranos, tem força para sobreviver ao hype e aos superficialistas. Ouvir Lee é um convite a conversar por quarenta minutos com um experiente e generoso sobrevivente. E isso não tem preço.

Ouça primeiro: “Will I Get Off Easy”

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *