i/o: canções de Peter Gabriel para o “novo” mundo
Cá estamos, no finalzinho de 2023, com um novo trabalho autoral de Peter Gabriel. Dessa vez temos um álbum inteiro de canções inéditas para ouvir e considerar e não somente faixas avulsas. Up, o álbum que antecede o novo trabalho, é de 2002. De lá para cá, o cantor, compositor, teorista e ativo defensor dos direitos humanos realizou turnês (é como os músicos ganham dinheiro nessa época em que a renda sobre a venda de produtos fonográficos físicos é irrisória, até mesmo para quem tem nome com projeção internacional), publicou em CDs e em LPs dois álbuns de regravações, dois ao vivo e duas compilações, além de DVDs e de Blu-rays com shows e vídeos. Em streaming, saíram uma coletânea de raridades e faixas avulsas de trilhas de filmes ou de projetos do tipo various artists. Isso sem falar nas colaborações dele com outros artistas e na participação em atividades públicas apartadas do fazer musical. Não podemos, portanto, dizer que Gabriel ficou inativo por 21 anos, mas é um período longo demais para um artista pop ficar sem lançar pelo menos uma dúzia de canções novas de uma vez só.
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Em 2002, ano de Up, os efeitos nefastos do ataque às torres gêmeas de Nova Iorque sobre o mundo, que deram um tremendo impulso às forças da extrema-direita em toda parte, eram incipientes. Foi um começo de século sombrio, vivido sob os escombros, a densa poeira e a barbárie e o sangue derramado de guerras e de ataques terroristas, no qual os Estados Unidos e outras superpotências exerceram de modo brutal e evidente seu controle (ou desejo de controle) da política e da economia planetárias. Os efeitos disso são sentidos até hoje. Junta-se a eles a intrusão cada vez maior, de 2002 para cá, da Tecnologia da Informação na vida cotidiana de bilhões de indivíduos, que têm privacidade constantemente violada em nome do controle social pelos poderosos e de interesses econômicos hegemônicos. Com os olhos grudados nas telinhas de seus smartphones, alheios ao que está ao imediato alcance físico, bilhões andam pelas ruas do planeta ligados ao equivalente tecnológico do “mundo das ideias” de Platão, vivendo como as sombras do Mito da Caverna.
Os sistemas de informação aos quais, por vontade própria ou por força institucional, estamos submetidos mostraram-se muito eficientes na disseminação de mentiras, algumas bem loucas (basta lembrar que os fascistas tupiniquins, negacionistas da pandemia de Covid-19, disseram que as primeiras mortes causadas pelo vírus eram “falsas” e que os caixões que eram enterrados não continham corpos, mas sim pedras), cuja aceitação em larga escala demonstrou e ainda demonstra que a espécie humana é muito mais irracional do que sensata, muito mais estúpida do que esclarecida. Nossos lapsos cognitivos, nossos crimes, nosso dogmatismo, nossos medos reais e imaginados e nossa pulsão de morte nunca estiveram tão evidentes e, mesmo assim, permanecem fortíssimos, esmagando as flores como um imenso e imparável rolo compressor. Ao mesmo tempo, há um legítimo levante de minorias em busca de seus direitos, de justiça, de equilíbrio de forças políticas, de representatividade cultural e política. Esse levante digno e mais do que necessário é alvo de constantes ataques da direita e de agentes de outros campos do espectro político, mas veio para ficar e para mudar a vida para melhor.
É este “novo” mundo que i/o, o álbum de Peter Gabriel, comenta. Mais do que isso, conforma-se a ele. Ciente das acusações de apropriação cultural de que foi alvo, junto com colegas e amigos como Paul Simon e David Byrne, particularmente no campo acadêmico (ainda que Gabriel tenha aberto e financiado um selo fonográfico que já lançou mais de 200 álbuns de artistas do mundo todo, sobretudo do que se convencionou chamar de Terceiro Mundo), o cantor e compositor evita o recurso a estilemas de gêneros musicais de origem africana, asiática e sul-americana em i/o, atendo-se astutamente à esfera do pop rock. Além disso, Gabriel evitou também no novo álbum as polêmicas geradas por canções moralmente ambíguas ou de maldade encenada como as irônicas “Sledgehammer” e “Kiss That Frog”, que abordam os agressivos desejos sexuais masculinos, a psicodramática “Diggin’ in the Dirt”, que trata dos impulsos violentos próprios do gênero masculino (outra encenação, dessa vez em tom sério, de dilemas de consciência provocados por inescapáveis instintos humanos), e a descritiva “The Barry Williams Show”, que satiriza o sensacionalismo midiático.
Os Rolling Stones também se esquivam dos temas mais controversos nas letras das canções do recém-lançado álbum Hackney Diamonds. Alguns podem dizer que os artistas estão a censurar a si mesmos e que isso é ruim, mas creio que é um gesto positivo de respeito à plurissensibilidade política e cultural da sociedade, ainda que, como foi dito antes, as canções de maldade encenada de Gabriel e dos Stones (apesar do machismo de algumas letras de Mick Jagger, em particular as das canções mais antigas) têm a função de dirigir críticas cruciais aos aspectos mais sombrios do comportamento humano e do modo de vida dominante. Trata-se de uma baliza introduzida no processo criativo com a qual muitos artistas de legado ainda estão aprendendo a lidar.
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As canções de i/o foram publicadas de janeiro a novembro de 2023 nos serviços de streaming, acompanhadas por vídeos em que Gabriel comenta a criação e o significado de cada uma delas. O músico convidou artistas visuais de diferentes países para criar imagens relativas a cada canção, algo que ele já tinha feito no álbum Us, de 1992. As faixas de i/o são oferecidas em mixagens Bright-Side (mais “leves”) e Dark-Side (mais “sombrias”), assinadas respectivamente por Mark ‘Spike’ Stent e Tchad Blake. Todas as mixagens estão nas edições físicas do álbum — a edição de luxo inclui In-Side Mixes, mixagem imersiva em Dolby Atmos feita pelo engenheiro de som Hans-Martin Buff, que trabalhou com Prince por muitos anos.
Do ponto de vista musical, i/o não se afasta muito de Up (trabalho de grande valor que permanece subestimado por seu caráter sombrio e por não ser facilmente digerível), cuja sonoridade é marcada por densas texturas instrumentais e pelo recurso a destacados efeitos eletrônicos. A diferença de Up para i/o é que as canções deste têm feições mais pop do que as daquele, são mais prazerosas quando ouvidas pela primeira vez.
O ritmo ainda é o cerne da música de Gabriel, que começou no Genesis como baterista (medíocre, segundo relatos) e que afirmou em entrevistas que a primeira etapa do processo dele de composição é o estabelecimento de um padrão rítmico — ele adiciona todos os demais elementos da canção depois de definir os aspectos percussivos dela.
As texturas sonoras urdidas por Gabriel, que ele passou a desenvolver com mais foco a partir do álbum de 1982, são derivadas das inovações formais introduzidas no campo do pop por Brian Eno e pelo grupo Tangerine Dream (que também influenciaram David Bowie e outros artistas mais afeitos à pesquisa de sons e de formas do que à conformação às modas musicais), que por sua vez foram inspirados pela música eletroacústica que surgiu na seara da música de concerto em meados do século XX. O que diferencia as texturas das gravações de Gabriel das feitas pelos “colegas de trabalho” dele é o modo como ele as entrelaça com o ritmo para criar música cinemática, que serve à contação de histórias que caracteriza a maior parte das letras escritas por ele desde a época do Genesis. Por isso o cantor e cancionista inglês foi convidado a escrever trilhas sonoras de filmes e saiu-se muito bem na empreitada: a música que ele preparou para o longa A Última Tentação de Cristo, de 1988, é uma das mais influentes dos últimos 30 anos (embora tenha sido ignorada pelo Oscar).
Gabriel é um melodista de grande talento e, durante o longo período em que trabalhou na gestação de i/o, parece ter dedicado especial atenção aos refrãos das canções, todos eles bastante atraentes (os de “Panopticom” e de “i/o” merecem o prêmio de refrãos mais pegajosos de 2023). Por mais que seja caracterizado como um artista “experimental”, Gabriel nunca foi radical do ponto de vista formal e lírico como Peter Hammill, vocalista e principal compositor do grupo de rock progressivo Van Der Graaf Generator que também desenvolve uma desafiadora e pouco conhecida carreira como solista. A música de Hammill é mais abrasiva, menos convencional, mais apartada dos códigos do pop do que a de Gabriel, que sempre habitou um campo intermediário, sempre negociou um acordo de paz entre a experimentação e o convencionalismo. Isso pode parecer uma fraqueza para muitos, em particular para aqueles que acreditam em rótulos tolos como “cultura middlebrow“, mas para mim é a grande virtude da obra de Gabriel porque envelopa os ouvintes em uma experiência artística prazerosa sem abandonar elementos-surpresa.
O título i/o refere-se aos processos de entrada e de saída próprios de sistemas, inclusive os biológicos. A noção de sistema sugere integração de etapas, mas o título parece apontar também para a dualidade do sistema binário (“i” seria 1 e “o”, 0) usado por computadores. Por mais integrado que seja, não há sistema sem algum tipo de partição e que seja imune a rupturas. Talvez essa seja uma interpretação poética ou francamente exagerada do título sucinto do álbum de Peter Gabriel, mas o conteúdo lírico das canções e a forma da música encenam segmentações, disfunções e desordens.
“Birth, and copulation, and death. That’s all the facts when you come to brass tacks”, trecho de um poema de T.S. Eliot de 1932 usado como epígrafe por Marvin Gaye no LP Let’s Get It On, resume os temas com que Gabriel tem trabalhado em suas composições mais recentes. O cantor disse em entrevista recente: “I’m trying to write principally about birth and death, with the sex in the middle.” Pensamentos sobre “o grande esquema das coisas” perpassam os textos de i/o — Gabriel nunca foi um letrista modesto, mesmo que as palavras de suas canções estejam subordinadas à melodia e ao ritmo, definidos no início do processo de composição.
“Playing for Time” e “So Much”, baladas ao estilo de Randy Newman, artista que Gabriel admira abertamente há décadas, lidam com a passagem do tempo e com a morte. São as faixas de i/o que mais me comoveram, pois são muito bonitas. A canção mais pessoal de i/o é “And Still”, na qual Gabriel fala da morte da própria mãe: “Ainda assim, suas mãos estão frias/As mãos que afagavam meu cabelo/Sinto você por toda parte/Carregarei você dentro de mim por toda parte”. São as canções do novo disco de Gabriel que poderiam figurar sem conflitos temáticos em Up.
A reconfortante sensação de pertencimento, seja a um relacionamento íntimo, a um agrupamento humano ou ao mundo natural, é o tema de outras canções do álbum: “Road to Joy”, “Olive Tree”, “Love Can Heal” e “This Is Home”. Faixa-título do álbum, “i/o” expressa o desejo de superação de conflitos a partir da percepção e da valorização da interdependência das pessoas e da relação inextricável delas com a natureza (“I’m just a part of everything” é a afirmação iluminada que marca o refrão). Em outra época, “i/o” poderia ser um sucesso nas rádios FM, pois tem melodia muito atraente e refrão contagiante, mas o espaço midiático para artistas de legado hoje é ínfimo. Apesar disso, a canção tem tudo para se tornar uma favorita entre os fãs de Gabriel.
Ligado em política, Gabriel não se furta a falar sobre esse tema. “Panopticom” reflete sobre a relação entre a perda de liberdade individual e os tentáculos tecnológicos que interferem no âmbito do micropoder. A referência a Vigiar e Punir de Foucault é evidente: “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”, escreveu o filósofo francês sobre o panóptico, estrutura arquitetônica prisional desenvolvida para o controle mais eficiente dos encarcerados.
“The Court” pode ser interpretada tanto como uma crítica ao tribunal das redes sociais como um comentário sobre um tipo específico de violência institucional, o lawfare, caracterizado pelo recurso às instituições e aos agentes judiciais para atingir propósitos políticos autoritários. Nós, brasileiros, vítimas de um golpe político com acentuada participação de figuras do Judiciário (a deposição de Dilma), podemos nos identificar abertamente com o que diz a canção. Por sua vez, “Four Kinds of Horses” baseia-se em uma parábola budista sobre escolhas individuais para tentar entender o que leva vários jovens a aderir ao terrorismo.
Em resumo, são canções feitas por um artista septuagenário que reúnem preocupações comuns a todos, mas que se comunicam de modo mais imediato com quem já tem pelo menos seis décadas de sofrimento, de perdas, de dúvidas e de eventuais alegrias nas costas. É música catártica, capaz de aplacar por algum tempo as dores e as angústias de quem a ouve. Assim são os trabalhos mais recentes de artistas idosos como Bob Dylan e Paul Simon, embora o novo álbum dos Rolling Stones ande na contramão dessa tendência e busque irradiar a energia identificada com a juventude. Ambos os caminhos são válidos, sobretudo se forem palmilhados de modo inteligente e empático. Espero que i/o não seja o último álbum de Peter Gabriel, que ele desafie a própria letargia fonográfica e lance mais material novo em breve porque sempre existirá demanda por música inventiva, sensível e bonita.
Ouça primeiro: “Play For Time”, “Olive Tree”, “And Still”, “i/o”, “Love Can Heal”
Zeca Azevedo é. Por enquanto.
Excelente resenha! Muito interessante o paralelo com o Peter Hammill e com os contextos politicos deste século. O Peter Gabriel sempre dialogando muito bem com a contemporaneidade. E nesse álbum, foi uma grata surpresa ver ele acompanhado do Eno, do Manu Katché, além dos triviais, mas nao menos incríveis, Tony Levin e David Rhodes. Foi muito bom acompanhar o lançamento das canções, a cada lua cheia. Baita disco, entre os preferidos de 2023.