Estreia do Black Crowes faz 30 anos
Toda lista de melhores discos de um determinado recorte de tempo tem suas omissões. A dos anos 1990 omite sempre a estreia do Black Crowes, “Shake Your Money Maker”. Até dá pra explicar o motivo: naquele tempo, a imprensa musical estava farejando a produção do rock alternativo, fosse ele americano, fosse ele inglês. Do primeiro tronco viria o grunge e, do segundo, o britpop, isso em números e linhas gerais. Ambos alimentaram capas de revista e programas da MTV por um bom tempo. E nada soava mais diferente destas duas vertentes do que o som que a banda de Atlanta, Georgia, fazia. Os Crowes apresentavam, logo de cara, neste álbum de estreia, uma maçaroca hard rock cascuda e cheia de ginga. Tanto a pegada guitarreira de Rich Robinson, quanto os vocais agudos de seu irmão, Chris, apontavam para velhos bichos felpudos, batizados pelas estradas, pelos bourbons e pela desilusão amorosa. Que nada, eram pouco mais de dois moleques atrevidos fãs de The Faces e de outras bandas inglesas do período, no sentido Rolling Stones de ser. Agora, 30 anos depois, é possível ver a estatura do seu primeiro trabalho, que ganha um relançamento triplo e pousou nos streaming hoje, dia 26 de fevereiro.
Os Crowes eram afins ao Aerosmith e ao Van Halen naquele início de década. As três bandas, mais um deslumbrado – e inflado – Guns’n’Roses, correspondiam a uma pegada mais conservadora em termos de música. Eram muito mais legítimos e interessantes que as bandas do “hair metal”, tipo Poison e Warrant e, claro, eram mais palatáveis que o pessoal do thrash metal, Metallica à frente, pouco antes de lançar o seu “álbum preto”, que também colocou o pessoal da Bay Area no mapa do “pop”. Sendo assim, por mais que o som dos Crowes fosse interessante e cheio de pedigree, ele, simplesmente não estava na ordem do dia. Dessa forma, a banda só emplacou lá fora porque nem todo mundo estava disposto a afiançar o grunge como o único rock possível nos Estados Unidos. Além disso, o já citado Metallica logo viria como uma alternativa fortíssima ao rock de então. E as outras bandas mencionadas teriam destinos diferente: o Van Halen, apesar de bem sucedido com seu álbum “F.U.C.K”, logo perderia fôlego criativo. O Aerosmith, pelo contrário, dobraria de tamanho ao longo dos anos 1990, estrelando clipes superproduzidos na MTV e emplacando vários hits nas paradas. E o Guns’n’Roses iniciaria um hiato de décadas após os dois álbuns duplos “Use Your Illusion” e lançar um disco de covers – “The Spaghetti Incident” – que apontaria a decadência da banda. O Black Crowes, portanto, desfrutou de uma certa discrição naquele momento, que lhe conferiu charme e classe.
Além disso, seu som era de longe o mais interessante de todos os mencionados. A capacidade dos irmãos Robinson em emular os climas setentistas de bandas como Faces e, em alguns casos, do próprio Aerosmith daquele tempo, era espantosa. E não era só pelo decalque sonoro, os caras eram excelentes compositores. Que disco de estreia já sai com faixas como “Twice As Hard”, “Jealous Again” e “Hard To Handle”, esta última, uma cover impressionante de Otis Redding? E com a produção luxuosa e detalhista de George Drakoulias, a banda soava absolutamente autêntica, revisando com propriedade o encontro entre blues setentista, tiques e taques anglófonos e certa mitologia estradeira romântica, que encharcava a obra de Faces e Rolling Stones naquele início de anos 1970. E, como se não bastasse, a voz de Chris Robinson soa com bastante propriedade bem afeita a essas tradições, muito próxima do registro do jovem Rod Stewart. Tal fato acontece seja nas canções mais plácidas, como em momentos mais incendiários e altos, caso da já citadas “Twice As Hard” e “Hard To Handle”, da belíssima “She Talks To Angels”, bem como do projétil “Struttin’ Blues”, propulsionado por riffs pantanosos e cheios de malícia ou da bodiddleyana “Thick’n’Thin”, que desafia qualquer ser vivo a ficar imóvel durante sua execução.
Esse relançamento de luxo foi supervisionado por Chris e Rich Robinson, junto com Drakoulias. Há uma versão monstruosa, composta por quatro LP’s ou três CD’s, que traz o disco original remasterizado, três gravações inéditas de estúdio, além de lados-B (entre eles, uma versão de “Jealous Guy”, de John Lennon, que mais parece as versões que os Faces faziam tão lindamente em seu tempo) e duas demos igualmente nunca ouvidas, do tempo em que se chamavam Mr. Crowe’s Garden. Fora estes mimos, o terceiro disco é composto por uma performance incendiária, datada de dezembro de 1990, em Atlanta, na qual a banda mostra um show com 14 canções. Fechando este pacote, um libreto de 20 páginas, com ensaio escrito pelo jornalista da Rolling Stone, David Fricke.
“Shake Your Money Maker”, assim com os discos iniciais dos Black Crowes, feitos até o fim dos anos 1990, são audição essencial para quem quiser ter noção precisa do amplo espectro do rock americano daquela década. Uma lindeza atrás de outra, que teve início neste belíssimo álbum.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.