As nossas Hiroshima e Nagasaki diárias
Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos conduziram os bombardeios às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Usando aviões B-29 Stratofortress, o 509º Grupo Composto da USAF foi o responsável pelos ataques. O avião que conduziu o bombardeio em Hiroshima tinha nome, Enola Gay, batizado por seu comandante, o Coronel Paul Tibbets, em homenagem à sua mãe, Enola Gay Tibbets. A bomba de urânio enriquecido, desenvolvida pelo Projeto Manhattan, também tinha nome: Little Boy. O evento em Nagasaki também tinha personagens: o avião – também B-29 – era o Bockscar. E a bomba de plutônio era a Fat Man. Senso de humor é tudo, né? O número de mortos, em sua estimativa mais pessimista, nos dois ataques, é de 246 mil pessoas, sem levar em conta os outros milhares que faleceram nos meses seguintes, com todos os tipos de doença, especialmente câncer, desenvolvidas a partir dos bombardeios.
E por que estamos falando disso hoje, justo quando não há nenhum aniversário ou evento correlato? Porque o Brasil já ultrapassou esta marca de mortos nos bombardeios atômicos japoneses. Já estamos além dos 251 mil mortos e contando. A tendência atual é que, se não for feito um lockdown de 14 a 21 dias, os sistemas de saúde entrarão em colapso por conta da enorme corrida aos serviços e pelas filas que já se formaram nas UTIs públicas e privadas.
Não era preciso ser gênio na epidemiologia para saber que o coronavírus, ignorado e achincalhado pelos foliões brasileiros irresponsáveis, não perdoaria. Dito e feito: dada a crescente negação da gravidade da doença, o atrelamento absoluto da vida brasileira ao mercado e à economia, o vírus passeia tranquilo e calmo entre nós, sem que seja importunado. O contágio aumenta, os leitos diminuem, a doença vai se tornando mais letal e a vacinação só existe como exceção.
No dia 25 de fevereiro, o Brasil registrou um novo recorde de mortos: 1584 em 24 horas. Se isso ocorre quase um ano após as primeiras medidas terem sido implantadas, qualquer pessoa com o mínimo de inteligência é capaz de concluir que nada do que estamos fazendo está dando certo. Enquanto os números de países que já tiveram maus momentos com a doença só fazem cair, os nossos índices só aumentam e mostram que estamos, sim, promovendo o abandono da população à própria sorte. Espremida entre a necessidade de trabalhar, a ausência de eficácia nas ações pífias do governo e a desunião nacional sobre a importância de vacinar e tratar a doença, o Brasil se tornou uma terra de ninguém.
Justo quando o recorde de mortes diárias era quebrado, o atual presidente do país fazia uma live em que questionava a eficácia das máscaras faciais, o único e mal utilizado item de segurança que foi mais ou menos assimilado pela população.
É uma pessoa que, não só despreza o próximo, como deseja a morte dos outros.
Enquanto isso, seguimos com os nossos números batendo marcas históricas de destruição. Quando a pandemia começou, roberto justus disse que “morreriam uns 5, 7 mil velhinhos e pobres”. Seria bom se ele acertasse o número. Já perdemos mais pessoas do que os Estados Unidos no Vietnã, que o império brasileiro na Guerra do Paraguai e agora, do que os japoneses em Hiroshima e Nagasaki. E ninguém parece se importar, diante da necessidade de tomar um chopp no barzinho.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.