Entrevistão com King Jim

 

 

Novembro de 2013. O músico Ricardo Cordeiro, 63, mais conhecido em Porto Alegre pelo apelido de King Jim e, no Brasil, por ter sido saxofonista dos lendários Garotos da Rua (dos hits radiofônicos “Tô de Saco Cheio” e “Eu Já Sei”, trilha da novela Mandala), desperta no meio da madrugada na cama de um hospital. Ele passara por um transplante de fígado e encontrava-se completamente confuso. Entubado, não conseguia mexer-se nem tampouco falar. Pensou estar numa tumba ou que jazia nas profundezas do inferno. Imerso em escuridão. “No fundo eu ouvia uma voz que dizia: ‘Não tenta te mexer, não tenta falar’. Pensei que podia ser o diabo ou que, talvez, tivessem me enterrado vivo. Mas era um enfermeiro que acendera a luz. Aí dei-me conta do que havia sucedido. Parecia que minha alma tinha voltado ao corpo”, relembra King, que diz ter sido salvo, ao receber o órgão da generosa família de um doador, aos “47 do segundo tempo”.

 

Pouco menos de um ano após a experiência rejuvenescedora de voltar à vida, como ele mesmo define, com o órgão de outra pessoa, King juntou-se a dois amigos, também conhecidos músicos de Porto Alegre e que também receberam doações de órgãos, para montar a banda Los 3 Plantados. O trio Los 3 Plantados é, acima de tudo, uma celebração à vida, define o saxofonista. O grupo é formado por ele, Bebeto Alves e pelo jornalista e radialista Jimi Joe (parceiro de Wander Wildner em vários de seus trabalhos). A vivência em comum deu origem a um show com 12 músicas autorais inéditas que se referem aos procedimentos e etapas da doação de órgãos (de forma simples, lúdica e explicativa) e, em 2018, também resultou em Alimente a Vida, um álbum “conceitual” todo dedicado à temática da doação de órgãos.

 

Nessa entrevista exclusiva concedida ao site Célula Pop, King Jim (alcunha derivada do apelido de “quindim”, ganhada por causa de um Fusca que teve na juventude) fala, entre outros assuntos, sobre como o fato de ter recebido o órgão de uma pessoa desconhecida acabou mudando sua vida; de sua cruzada particular para difundir a importância salvadora que é a causa da doação de órgãos; de como foi verter, juntamente com Jimi Joe e Bebeto Alves, a delicada experiência de terem passado por transplantes em música. E, por fim, também rememorou os Garotos da Rua e a algumas experiências vividas pela banda no Rio de Janeiro, onde habitaram boa parte dos anos 80, quando gozaram de sucesso nacional. De quebra, King ainda falou, em primeira mão, sobre o documentário que está sendo produzido e que logo deverá ser finalizado.

 

Como rolou a ideia de montar um grupo formado por músicos que passaram por transplante de órgãos?

King Jim: A ideia de fazer um trio de músicos transplantados, cujo repertório são canções que versam sobre a doação de órgãos, surgiu logo após o Bebeto Alves, o Jimi Joe e eu passarmos por transplantes na mesma época. Em razão disso, nos procuramos para partilhar a experiência de cada um. Foi assim que a coisa toda começou. Mas, antes de tudo, a primeira coisa que vem à cabeça é a enorme generosidade da família que doa o órgão de seu ente querido, recém-falecido, a um desconhecido. Trata-se de um ato de sublime de humanidade. Isso toca profundamente o coração de quem passa por isso. A gente sente imediatamente a necessidade de fazer algo por alguém em retribuição. Parece que passamos a pensar diferente e algo muda drásticamente dentro de nós.

 

 

Qual o maior desafio no sentido de transformar algo tão delicado em música?

King Jim: A vontade de fazer algo de útil por pessoas que padecem de um problema em comum já é, por si só, uma inspiração e tanto. No caso de mim, do Bebeto e do Jimi nos caracterizamos por sermos três músicos de áreas distintas e que nunca haviam feito nenhum trabalho musical juntos, mas que então, devido às circunstâncias, passaram a ter uma conexão muito forte. Foi até lógico, na realidade, que construíssemos uma ação dedicada à uma causa voltada ao propósito de ajudar na disseminação de informações sobre a necessidade da doação de órgãos. A música, nossa “arma”, é nossa grande ferramenta para tanto.

 

Como foi o primeiro encontro de vocês três da Los 3 Plantados?

King Jim: Em nosso primeiro encontro pudemos expor nossos sentimentos aflorados nessa condição de transplantados. É preciso ressaltar, no entanto, que transplante não significa “cura”. É, na verdade, um tratamento bônus. Uma “bonus track”, para utilizar o termo oriundo da música. É, melhor dizendo, a chance de se continuar vivendo e ser uma pessoa melhor de verdade. Nosso encontro foi carregado de emoções. E sabíamos que, dali pra frente, sempre, em qualquer encontro ou evento que participássemos, seria dessa maneira. À flor da pele. O processo pelo qual passamos é difícil de explicar. A quase morte e o novo recomeço despertam novos sentimentos e sensações. Tanto que fizemos quatro músicas na mesma tarde em que nos encontramos pela primeira vez. Todas sobre relatos a respeito do pré-transplante, do durante e do pós. Percebemos ali que teríamos de equilibrar, nas composições, a questão pesada da morte com uma abordagem mais leve, divertida e alegre. E assim são os nossos encontros em hospitais, quando tentamos levar nossa experiência e esperança para os que estão na fila aguardando um novo órgão. Os shows também são sempre impregnados de muita carga de emoção, risos e choros de todos os tipos. O assunto mexe com qualquer um.

 

Você acredita que seu estilo de vida o tenha levado à sua doença?

King Jim: Nasci asmático. Sobrevivi desde sempre no clima louco de Porto Alegre, que nos ensina a ser “forte”. Médicos recomendaram-me esportes e um instrumento de sopro para dar mais resistência pulmonar. Porque asma não é falta de ar e, sim, excesso. Tem que pôr para fora, na real. Soprar. Mas jovem é rebelde e, mesmo com saúde frágil, sempre a desafiei com o uso pesado de drogas e álcool. Provavelmente eu tenha contraído hepatite C no final dos anos 70, quando fiz uso de drogas injetáveis. Esse vírus pode ficar incubado por décadas… No auge da carreira morei no Rio e tive uma doença real, a Porfiria Cutânea Tarda. É quando o metabolismo produz excesso de ferro. Ao tratá-la descobri a hepatite, a qual se transformou em cirrose.

O médico disse que o único tratamento para mim era o transplante. Mas, para eu conseguir chegar à possibilidade de receber um órgão, eu teria de mudar totalmente meus velhos hábitos. Muita gente morre aguardando um órgão porque pouca gente doa. Há pouca divulgação dessa questão. Combinei com médico de me internar numa clínica e largar totalmente os vícios para, só então, tentar poder um dia receber um fígado gentilmente doado por uma família. Porque a Lei brasileira funciona desse modo. Esperei bravamente com as sequelas da cirrose me consumindo ao longo de quatro tortuosos anos. Tive de arrancar quase todos os dentes que não estavam inteiros. Já não respirava, não andava. Não me alimentava direito e, ainda por cima, tinha encefalopatia, que é quando tu não sabes quem é e onde está, uma vez que o fígado está intoxicado e o cérebro fica confuso.

Foram minha esposa e minha família que me salvaram, pois, quando ligaram dizendo que havia chegado um órgão, levaram-me ao hospital sem eu perceber. Eu tava literalmente fora da casinha. No limite da vida. Totalmente na prorrogação. Quando abri os olhos, após a cirurgia de sete horas, não conseguia me mexer e nem falar nada. Tava tudo escuro. No fundo eu ouvia uma voz: “Não tenta te mexer, não tenta falar”. Pensei que podia ser o diabo ou que, talvez, tivessem me enterrado vivo. Mas era um enfermeiro que acendera a luz. Aí dei-me conta do que havia sucedido. Parecia que minha alma tinha voltado ao corpo.

Algumas questões de vida ou da morte surgem na vida da gente para forjar e aprimorar uma nova forma de viver. Eu acredito nisso. Uma nova chance de ser gentil a fazer a diferença. Assim como essa pandemia, a cirrose, o transplante e a doação transformaram-me. Tá fazendo dez anos que não uso drogas e não bebo uma gota sequer de álcool. E, nem por isso, tornei-me uma mala conservadora. Pelo contrário. Valorizo, agora, cada respirada, cada ato e ação pró-vida. O passado tá presente e é importante com todas as cagadas que eu possa ter feito. Faz parte indissociável da trajetória. Não devemos negá-lo e, sim, sublimá-lo. Eis a lição.

 

E disso resulta o disco chamado Alimente a Vida…

King Jim: Virou, para mim, uma missão eterna, desde então, divulgar a importante causa da doação de órgãos. A divulgação da informação sobre a doação ainda é precária no país. Assim como o próprio número de transplantes realizados anualmente. No Brasil, além de complicado, tudo é muito burocrático, embora haja grandes profissionais habilitados lutando bravamente para que essa matéria entre nas universidades e faça parte da vida de cada cidadão.  Na Espanha, por exemplo, é automático. Quando a pessoa morre ela automaticamente vira uma doadora em potencial. Ao longo de seis anos fizemos muitas ações em universidades, hospitais e teatros criando um repertório com músicas tratando das experiências, vivências e aventuras em torno desse tema passadas por nós três. Nada mais natural que então gravar um disco com a presença de muitos amigos músicos. Fizemos um crowdfunding, mas não atingimos o objetivo financeiro que havíamos estabelecido. Talvez pelo assunto “pesado”, embora importantíssimo. Matamos a situação mais uma vez na raça e bancamos de forma independente. Virou um disco cult. Tem de tudo nele: “milonga pinkfloydiana”, rocks e diversas experiências sonoras com a participação de grandes ícones da cena musical do Rio Grande do Sul. Nomes como Renato Borghetti, Duca Leindeker, Luís Vagner, Humberto Gessinger, Luciano Leães, Lúcio Dorfman Luciano Albo, Biba Meira, entre outros. Alimente a Vida tem alma e espírito mágicos. Sou suspeito para falar. Só posso sugerir que as pessoas ouçam e experimentem. Estão todos convidados a experienciá-lo.

 

 

E o filme que está por vir?

King Jim: Estamos finalizando, a muito custo, um documentário longa-metragem sobre tudo isso e mais um pouco. A edição é do renomado cineasta e montador Giba Assis Brasil. A ideia era concluir o filme com um grande show, mas veio a pandemia e fomos obrigados a abortar. Tivemos de improvisar fazendo a participação musical de cada um em suas próprias residências. Como numa realidade surreal que nos pegou de surpresa levando-nos para um novo mundo anormal. O antigo amigo Carlos Caramez está a frente do projeto que teve o auxílio de muitos amigos e profissionais para transpor para a tela essa luta que é desconhecida para uma grande maioria de brasileiros. Nessa pandemia, a doação de órgãos e os transplantes diminuíram drasticamente.

 

Quais suas lembranças sobre os Garotos da Rua e o período em que moraram no Rio de Janeiro?

King Jim: Os Garotos da Rua foram um grupo criado em Porto Alegre num momento em que havia um hiato de rock ao vivo na cidade. Do final dos anos 70, até o início de 83, nenhum bar tinha bandas tocando esse tipo de música. É claro que havia grupos e pessoas que ouviam e gostavam de rock. E em alguns bailes também podia se ouvir. Nos anos 60, os Cleans e o Luís Vagner, d’Os Brasas, já haviam ido à Sampa e ao Rio levando seu rock-and-roll e samba rock. Nos 70, o Liverpool, por sua vez, que fazia um som psicodélico, virou Bixo da Seda e transitou pelo centro do país fazendo um rock mais visceral. Chegaram a ser âncoras do programa de TV Som Livre Exportação, mas depois dispersaram-se e foram acompanhar as Frenéticas. A partir daí, o rock que tentava sair do Rio Grande do Sul deu um tempo. Na verdade, um longo tempo.

Em janeiro de 83, o Mitch Marinni, da banda Swing, me ligou para participar da abertura do Van Hallen, a qual vivia seu auge mundial, que iria se apresentar em Porto Alegre.  Nunca tinha visto nem tocado com equipamento semelhante. Guitarra sem fio e nenhuma caixa de som à vista, por exemplo. Durante anos eu e o Mich forjamos um repertório autoral tocando todas as noites em Porto Alegre. Daí começaram a surgir dezenas de bares e centenas de grupos de rock na cidade. A ponto de serem feitos vários festivais, os quais atraíram a atenção da major RCA. Rolou que o célebre disc-jockey porto-alegrense Claudinho Pereira contatou o diretor da gravadora, o Tadeu Valério, que veio a Porto Alegre conferir o movimento a fim de pinçar cinco bandas para um disco só com grupos gaúchos de rock. O resultado disso foi o pau-de-sebo Rock Grande do Sul. Os Garotos fomos os primeiros a serem escolhidos, por estarmos mais estruturados com equipe de produção.

Em dois anos, fazendo parte do cast da RCA, estávamos morando juntos num enorme apartamento na rua Rainha Elizabeth em Ipanema. A gravadora nos colocou num lugar paradisíaco. Não sei como não nós matamos morando todos juntos no mesmo apartamento…  Assinamos por três LPs ou dez anos de contrato. Era o início do encanto do rock nacional com programas de auditório, músicas tocando em todas as rádios do país e o profissionalismo através da arte realizando-se. Algo nunca antes imaginado. Um momento idílico, daqueles que põe à prova o caráter do ser humano e impõe vários questionamentos. Éramos jovens e tínhamos sucesso fora da nossa terra.

Vivenciei muito o Rio dos anos 80. A partir do Rio fizemos inúmeros shows pelo país todo e e até em cidades fronteiriças de países próximos. Uma coisa boa que nunca esqueço é que, quando tínhamos de ir à São Paulo, embarcávamos no maravilhoso trem da meia-noite, que chegava às seis da manhã. Muito melhor que a ponte aérea que, na maioria das vezes, demorava muito e e cansava muito mais.

Dividi um apartamento em Santa Tereza com o Celso Blues Boy. E morei na Rua Pio Correa ao lado da entrada do túnel Rebouças, na Lagoa. Era um condomínio onde o Renato Portaluppi foi meu vizinho quando jogava no Flamengo. O Renato, aliás, chegou a participar de uma música dos Garotos da Rua num show que fizemos no Teatro Ipanema.

Mas, na realidade, o que mais aproveitei foi a diversidade cultural do Rio. Sem dúvida. Uma fas minhas maiores experiências foi encontrar o Nelson Gonçalves no estúdio da RCA que levava o nome dele na rua Barata Ribeiro. Ele viu que jaziam esticadas umas carreirinhas de cocaína em cima do piano de calda e comentou conosco que, na época em que ele usava, “trazia o barril” e “enfiava a cara”.

 

 

Existe alguma possibilidade de os Garotos da Rua voltarem?

King Jim: Os Garotos são uma espécie de entidade. E, como todas as bandas que se prezam, sempre teviveram suas disputas internas. Hoje ainda há uma pendenga pelo registro do nome, mas acredito que o que interessa é a obra e a história. Estou escrevendo algo sobre isso. Ainda faço muitos shows com o integrante original e parceiro do [guitarrista] Justin Vasconcelos. O repertório é recheado de nossos principais sucessos e, além disso, sempre temos músicas novas pra mostrar.

 

 

Qual o apelo você faz para a doação de órgãos?

King Jim: Sem dúvida, meu recado, nesse momento, vai para aqueles que, se puderem, fiquem em casa. É um momento para reflexão e retomada de consciência. Repensar os valores impostos e o que se pode e se deve mudar para que o máximo de pessoas possam conviver melhor em meio a essas intempéries. Doar órgãos salva vidas.

 

  • Foto: Fernanda Chemale

 

Cristiano Bastos

Cristiano Bastos é jornalista. Um dos autores do livro Gauleses Irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Escreveu Julio Reny – Histórias de Amor e Morte, Júpiter Maçã: A Efervescente Vida e Obra, Nelson Gonçalves – O Rei da Boemia e o livro de reportagens Nova Carne Para Moer. Também dirigiu o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Atualmente trabalho no projeto 100 Grandes Álbus do Rock Gaúcho, que se encontra em campanha de financiamento pela plataforma Catarse: https://www.catarse.me/100GrandesAlbunsDoRockGaucho

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