Entrevista – Guilherme Held

 

 

 

“Corpo Nós”, disco que Guilherme Held lançou ano passado, foi considerado pela crítica especializada como um dos melhores trabalhos musicais feitos por aqui. Uma ouvida nas faixas comprova isso com firmeza, uma vez que Held oferece um desfile de influências, gêneros, nuances e detalhes, não só de suas habilidades como guitarrista e compositor, mas de traduzir suas várias influências em forma de música sem que perca a personalidade. O álbum é tão rico, que sua audição é daquelas que exige atenção do ouvinte, algo que é plenamente recompensado pela riqueza que ele traz.

 

Guilherme conversou com a gente e contou um pouco de sua formação, suas influências e sua proximidade com Lanny Gordin, um dos guitarristas mais atuantes no Brasil dos anos 1960/70, com participações em trabalhos de muitos artistas conhecidos. Suas respostas foram minuciosas como seu trabalho, um verdadeiro presente para quem curtiu o disco e para quem deseja mergulhar – como ele mesmo diz – em uma música que é ampla e bela.

 

 

– Seu disco “Corpo Nós” parece um desfile de várias vertentes da música pop brasileira dos últimos 30, 40 anos. Quando você compôs as canções, tinha esse conceito em mente?

Este disco é um disco de vivências em São Paulo, como músico e pessoa. É um disco de amigos e pessoas que transitam nesta mesma energia química. Ele carrega influências de artistas brasileiros antigos e recentes. Acaba sendo um trabalho de pesquisa, de coisas que eu já realizei, de músicas que eu ouvi…Eu diria que não é só de música brasileira, apesar de ser um disco brasileiro, mas tem toda essa influência dos trabalhos que eu fiz e dos sons que eu estava ouvindo em várias fases. Acabou sendo algo natural e nada planejado. Houve mergulhos nos afrosambas, na Tropicália – dos tempos com o Lanny Gordin – também no “Clube da Esquina, com o Milton Nascimento, com quem eu trabalhei recentemente.

Esse último mergulho foi muito intenso, não só como artista mas como produtor musical e que também gerou composições, como “Tempo de Ouvir O Chão”, feita numa época em que eu tava muito envolvido, um transe musical, reflexo de tudo aquilo que estava acontecendo. Na verdade, eu tenho essa bênção de ter esse mergulho na música brasileira, de ter essas referências, esses discos geniais, que coincidem com essa época, de meados dos anos 1960 e seguem embora. Mas o “Corpo Nós” também tem influências de amigos com os quais convivi. “Laço de Fita”, por exemplo, é fruto da convivência com o Criolo, eu sinto que o arranjo e a cara dela são homenagens à epoca do “Nó Na Orelha” e do “Convoque Seu Buda”, de todo aquele universo que eu estava explorando e aprendendo muito, com todos eles ali. Também teve o Dante Ozzetti, que me convidou para trabalhar em músicas do Tom Jobim, do seu lado mais orquestral. Isso aí também me levou a compor uma faixa, “Direto Humano”. Tudo isso é um reflexo natural da minha caminhada.

 

 

– Conta quais suas influências e inspirações como guitarrista.

Minhas influências vêm lá de trás, desde antes de começar a tocar. Lá com oito anos eu já ouvia os discos dos meus pais, de música brasileira. Daí ganhei uma fita dos Beatles e foi uma grande descoberta. Eu vi tudo do rock dos anos 1960/70. Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd, Jimi Hendrix…Depois, nos anos 1990, com os amigos, com uma nova de uma estética musical, isso também me influenciou pesadamente com Beck, Red Hot Chili Peppers, Sonic Youth, Primus, o hip hop com Beastie Boys, Cypress Hill, o dub…todas essas estéticas mexeram com a minha cabeça na época, quando eu descobri a possibilidade do rap fundido com banda. Em paralelo, meu avô ouvia choro, MPB…meus amigos de Araçatuba, com quem eu montei minhas primeiras bandas, acabei descobrindo melhor a música feita aqui. Eu tinha um primo que frequentava umbanda e candomblé, eu ouvi os tambores e isso foi muito transformador para mim, até hoje está na minha música. Depois comecei a ouvir muita black music e estudar jazz.

Fui pego pelas trilhas do Tarantino e nos anos 2000 eu vim pra São Paulo e já conhecia o Lanny Gordin. Eu migrei do rock e fui para o jazz, e nesse estilo eu posso citar o Bola Sete, guitarrista, que me influenciou muito. E o Lanny. Comecei a ouvir os gringos – Tal Farlow, Pat Martino (que tem um método que compara a harmonia com o I-Ching, eu estudei os dois livros dele). Mils Davis, John Coltrane, Bill Evans, toda aquela cena do jazz tradicional dos anos 1970. E do fusion. Eu e Lanny ouvimos muito isso tudo aí quando moramos juntos, entre 2004 e 2008, mais ou menos. Com os amigos de São Paulo e as convivências aqui, eu tive um mergulho muito intenso na música africana, daí eu descobri o Pedro Santos, o Dur Dur, o Ebo Taylor….tive a honra de dividir palco com o Tony Allen, com o Mulato Astatke, fizemos uma releitura do disco “Os Afro-sambas” e tivemos como banda uma mistura de integrantes de Bixiga 70, Metá Metá e os músicos do Criolo e, na época, eu tocava com ele. Foi um mergulho muito intenso que, com certeza, culminou em composições que estão em “Corpo Nós” como “Isso É O Que Se Diz Irmão”.

Agora eu tenho ouvido muito a cena alternativa que as plataformas digitais vão me indicando, daí tenho prestado atenção em Ariel Pink, Connan Mockasin, Ty Segall, Vinyl Williams, Tame Impala, tenho ouvindo muito a cena de som do synthwave, gosto dos DJs também, o J.Dilla…tenho verdadeira tara por descobrir som novo que seja muito foda. Essa energia da descoberta me fascina.

 

 

– Você reuniu um verdadeiro “quem é quem” da nova música brasileira no teu disco. Conta como você selecionou essa galera e como foram as gravações.

 

O disco tem uma ligação muito forte com pessoas com quem já trabalhei. Tanto músicos como cantores. Quando eu iniciei o processo, o Rômulo Froes, que assinou a produção artística do disco, foi crucial. Era um vasto material e seria importante ter uma pessoa do meu lado, que me conhecesse, que conhecesse essa galera com quem eu convivo, pra gente poder formatar tudo junto. Eu confio nele, no gosto musical, era a pessoa certa para entender tudo. Eu tenho uma pasta, que o Rômulo chama de “Baú do Gui Held”, partimos de 75 músicas e chegamos a 17.

Foi muito fluido entre nós o entendimento de quem seria os intérpretes de cada faixa. Eu não escrevo letras, daí a gente já identificou os parceiros, pra conseguir entender quem seria o letrista, quem seria o intérprete, quem seria a banda…Eu fiz questão de fazer uma produção musical super detalhista, eu conhecia os músicos bem a fundo. Por aí eu já sabia qual seria a química perfeita de cada música. Acaba sendo um disco longo no sentido musical, mas também no sentido da ficha técnica, no sentido de ter umas 70 pessoas envolvidas na gravação.

 

 

– Você tem uma relação bem bacana com o Lanny Gordin, um dos grandes guitarristas brasileiros de todos os tempos. Quais os trabalhos dele que você mais gosta?

Sim, ele é um dos grandes guitarristas brasileiros de todos os tempos. Ele fez tanta coisa crucial e inspiradora que eu vou pontuar alguns. O “Build Up”, da Rita Lee; o “Expresso 2222”, do Gil; o “álbum branco” e o “Araçá Azul”, do Caetano Veloso; o “Carlos, Erasmo”, do Erasmo; o disco de 1972 do Jards Macalé, o single “Chocolate”, do Tim Maia e o disco “Brazilian Octopus”

 

 

– Como foi o teu processo de aprendizagem da guitarra? Você é autodidata?

Tem um lado autodidata, mas eu também estudei. Eu ganhei meu primeiro violão com oito anos, mas tive um professor que me ensinou algumas músicas. Depois fui pra um conservatório, ganhei minha primeira guitarra com 12 anos. Na adolescência eu tive mais tempo, vontade e fiz um mergulho forte nisso, estudava oito a dez horas por dia, durante um ano e meio. Isso me fez dar um grande salto como guitarrista eu já dava aula em dois conservatórios com 16 anos. Depois eu fui cursar Odontologia, fiquei com pouco tempo pra música, mas continuei dando aula, estudando música por conta própria, como, por exemplo, a “Bachianinha” (Paulinho Tapajós e Toquinho), que é uma música que eu adoro e cheguei a usar como improviso no número solo que eu fazia no show do Criolo, o “Nó Na Orelha”. Depois que me formei na faculdade, eu vim pra São Paulo, eu tinha acabado de conhecer o Lanny e eu era uma cara muito do rock. E com isso veio o jazz, eu não tinha esse lado e tava louco pra entender tudo aquilo.

Essa convivência nossa começou a funcionar nesse sentido musical, o Lanny estudou lá atrás, e tem décadas que ele toca no transe, ele não tem regras. Mais recentemente eu procurei a ULM (Universidade Livre de Música, atual Escola de Música Tom Jobim, do estado de São Paulo) e lá eu fui instigado a entender algumas coisas que o Lanny fazia, mas não tudo. Nem toda a teoria gringa que eu aprendi lá dava conta do que ele fazia. Também tive aula lá com o Romeu Stockler, o “Alemão”, que também tocou no disco do “Brazilian Octopus” com o Lanny. Ele é um grande guitarrista. Era uma época bem legal, às vezes os dois se encontravam depois da aula, a gente tomava um guaraná e eu ficava ouvindo as conversas deles sobre os anos 1960, como era a música, o cotidiano do trabalho, foi um momento mágico da minha vida.Depois eu fui ficando mais autodidata. Compondo, estudando, fazendo coisas por conta própria. Projetos sobre o Clube da Esquina, sobre o Tom Jobim, um tributo ao Lanny…acaba que toda essa vivência é um estudo. A própria vivência do cotidiano, como pessoas, é um estudo. Quando a gente entra no transe para compor, tudo isso acaba entrando.

 

 

– Você pretende levar o repertório do disco para a estrada?

Sim! Quero reviver cada uma dessas composições e arranjos no palco. Durante a pandemia a gente tá buscando novas frentes, não tá fácil. Eu tenho planejado lives, assim que tudo estiver mais calmo e resolvido, tudo voltar ao normal, eu pretendo fazer shows aqui e no exterior.

 

 

– O disco é cheio de colaborações muito diversas. Como é o teu processo de composição? Vc faz só a música ou também escreve letras, arranjos…

Meu processo de composição não tem forma definida. Eu preciso ter um gravador por perto, pra registrar. Depois eu vou guardando tudo numa pasta, faço assim já há uns 17 anos. Depois que eu faço isso, às vezes vem um riff, uma harmonia, uma melodia, às vezes eu pego tudo isso e vou organizar. Se a música já veio completa – como eu não faço letra – eu procuro entender de onde veio a inspiração dessa música e, a partir disso, eu consigo achar um letrista que vai dar conta de traduzir isso. Sempre dá certo. Ou eu vou montando a partir do que eu chamo de “cacos”, que são trechos, pedaços que, às vezes são de datas distintas. Eu monto e entendo se a melodia já está fechada ou se eu entrego para alguém fazer isso, junto com a letra. Até agora eu não escrevi uma letra e nunca rolou de eu musicar uma letra. Ainda não rolou, mas vai acontecer. E tem um outro formato em que eu e o cantor fazemos uma improvisação e, a partir disso, sai a música. No “Corpo Nós” eu entreguei melodias abertas pro Curumin, pra Tulipa, pro Rubel, pro Lanny, aliás, essa foi um improviso. Ele falou “Vamos desafinar as duas guitarras completamente, quebrar os vínculos com o mundo material e fazer um “free””. E isso foi o ápice do nosso entrosamento. A chance de dar errado era gigantesca. Foi um transe coletivo muito legítimo.

 

 

– Quais bons nomes da guitarra brasileira atual você recomenda pro leitor da Célula Pop?

Guitarristas de agora que eu poderia citar: Fernando Catatau, Gustavo Ruiz, Kiko Dinucci, Felipe Cordeiro, Chico Pinheiro, Tim Bernardes, Lelo Brandão…tem muita gente legal na praça.

 

 

– E essa situação atual do país? Como isso te afeta como artista? Inspira?

Estamos vivendo um momento inédito, precisamos aprender como lidar com essa mudança de base, respeitando, em primeiro lugar, a mente e o corpo. Isso dará suporte para a conexão criativa. E pra resolver a questão da grana, temos que ser criativos e estar abertos para essa mudança e novos caminhos. Então, com a Internet tomando uma proporção poderosa como veículo de informação, temos que estar antenados pra essas oportunidades. O músico tem que abrir a cabeça pra essas conexões, não pode ficar preso só ao seu instrumento. Ter um home estúdio, fazer lives, produções, mesmo caseiras, que proporcionem esse extravasamento musical. O mercado de vinil também cresceu, talvez seja um ponto positivo da pandemia. O mercado crescendo faz com que a gente se adapte melhor aos maus pagamentos do digital e abre espaço pra uma vertente paralela. Quando tudo voltar ao normal, se o vinil estiver vendendo bem, então vamos na raça.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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