“Duna” segue impenetrável para neófitos

 

 

A nova versão cinematográfica de “Duna”, dirigida por Denis Villeneuve tem um mérito inquestionável: arremessa a adaptação de David Lynch, feita em 1984, para o terreno do ridículo absoluto. Sabemos que a primeira versão ganhou status de cult involuntário ao longo dos anos mas já era sabido, pelo menos pelos leitores da saga do escritor Frank Herbert, que Lynch cometera excessos imperdoáveis. Tudo bem, era os anos 1980, aquele tempo colorido e meio esquizofrênico, que só quem viveu, sabe como foi. Agora, pleno 2021, a história da Casa Atreides e do planeta desértico Arrakis ressurge com uma abordagem séria e que se pretende fiel à intrincada trama que Herbert escreveu nos anos 1960.

 

Se você não conhece a história, vamos lá. Tudo se passa no longínquo ano de 10191, quando a humanidade já está careca de ter colonizado a galáxia. Existe um Império que governa o universo conhecido e uma forma de governo que lembra alguma coisa do feudalismo. Planetas e sistemas solares são divididos entre Grandes Casas, que os administram em troca da proteção imperial. Há comércio, há guerras, há religião, ou seja, o décimo-primeiro milênio não será tão diferente assim do que vemos hoje. A trama de “Duna” fala do planeta Arrakis, que tem este apelido por conta de sua aridez, mas, ao mesmo tempo, é um dos lugares mais valiosos do universo por ser a única fonte da Especiaria. Esta substância está nas areias do planeta, precisa ser extraída e, uma vez processada e usada da maneira correta, torna possíveis as viagens interestelares por conta da expansão da mente dos navegadores espaciais. Ou seja: quem controla Duna, controla a Especiaria.

 

É neste contexto que conheceremos a Casa Atreides, comandada pelo Duque Leto Atreides (vivido por Oscar Isaac). Um homem bom, justo, que tem um filho, Paul (Timotheé Chalamet), fruto de sua união com Jessica (Rebecca Ferguson). Os Atreides governam um planeta há gerações, mas são convocados a assumir Arrakis após decreto imperial, que eles têm que cumprir. Sendo assim, tem início uma transferência de poder, uma vez que o árido planeta era governado por outra Grande Casa, os Harkonnen. Neste cenário a trama irá se desenrolar, com especial atenção às habilidades extrassensoriais que Paul demonstra ter. Sua mãe é integrante de uma ordem secreta, as Bene Gesserit, mulheres que usam poderes mentais e desenvolvem habilidades de controle corporal que podem ter servido de inspiração para George Lucas criar os Jedis. Pois bem, tudo isso acontece nos primeiros dez, quinze minutos de filme.

 

Arrakis, é bom dizer, tem um povo nativo, os Fremen. Eles receberão os Atreides e os tratarão como qualquer forasteiro: com desdém. Mas a visão de Paul os fará pensar que estão diante de um Messias, por conta de uma velha profecia local, que prevê a chegada de um homem de fora do planeta, que liderará o povo para uma época de melhor sorte. A vida no deserto é um dos grandes atrativos da história de “Duna” e a direção de figurino caprichou aqui, especialmente nos “trajes-destiladores”, que são usados para tornar possível andar no deserto durante o dia. E também pela caracterização dos olhos azulados dos Fremen, causados pela exposição contínua à Especiaria.

 

Não vou dar qualquer spoiler, mas o leitor de “Duna” sabe muito bem o que irá acontecer com esta mudança de ares. Tudo o que está no livro, de uma forma às vezes abstrata demais, está no filme. Villeneuve não teve qualquer pudor em seguir sequências inteiras da trama escrita, o que é bom para dar crédito ao que estamos vendo. Os efeitos especiais são excepcionais e na medida certa para criar um mundo tão estranho quanto esta galáxia de tantos milênios no futuro mas, ao mesmo tempo – como no livro – conservar um clima que remete ao passado feudal da nossa história. O elenco é afiadíssimo, contanto também com Josh Brolin (como Gurney) e uma rara boa atuação de Jason Momoa, na pele do armeiro Dunca Idaho. Também digna de menção é a presença de um irreconhecível Stellan Skarsgard, como o Barão Harkonnen e de Dave Bautista, como Raban Harkonnen. Mas talvez a atuação mais interessante seja a de Javier Barden, como Stilgar, o líder dos Fremen. Sua postura é sensacional e seu tipo físico se encaixa perfeitamente. A brilhante Zendaya também está presente, como Chani, mas não está no mesmo nível dos outros.

 

“Duna” é legal e vai agradar demais a quem conhece a história. Seu maior problema, na verdade, o único e definitivo, é não ser capaz de tornar a trama acessível para quem não tem familiaridade com o universo criado por Frank Herbert. Fico me perguntando se isso é possível neste caso. De qualquer forma, o ritmo do filme é abstrato, seu visual é impressionante e vale conferir. Se eu posso dar uma única dica para tornar a experiência válida, aqui vai: leia o livro antes. Vai por mim.

 

 

Em tempo: Este “Duna” de Denis Villeneuve foi concebido como uma primeira parte. A história do primeiro livro de Frank Herbert (há sete) só é contada até a metade.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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