The Band e a alta do dólar

 

 

Ao longo da década de 2000 e nos primeiros anos 2010, foi possível chegar no fim do ano e comprar alguns discos importados. Não vou entrar no mérito sobre a necessidade de comprar CD’s ou LP’s em pleno 2019, é certamente supérfluo. Assim com o são inúmeros produtos do capitalismo industrial nas vitrines reais ou virtuais do mundo. Há quem prefira um vidro de hidratante importado com enzimas proteicas raras. Há quem ache mais legal comprar uma camisa da NBA por quase 500 reais. Há também quem tenha grana pra comprar um carro zero. Eu, na minha humildade, ficaria satisfeito com alguns disquitchos, como diria meu amigo Zeca Azevedo.

 

Mas não. Não vai rolar. O dólar está além dos 4 reais e promete subir mais. O motivo? A política neoliberal radical adotada pelo governo atual, personificada no ministro paulo guedes. É tragicômico porque, há menos de um ano, o preço atual do dólar era dado como consequência triste de uma eventual não-aprovação da reforma da Previdência, que, como todos sabemos, foi aprovada. Sendo assim, como não podem derrubar a presidente Dilma novamente, em busca de um eventual retorno do dólar ao patamar de dois reais, os integrantes do governo seguem em sua rotina de rapinar o patrimônio público e impor a conta aos mais pobres da sociedade.

 

Em meio a isso, longe de significar uma falta de sensibilidade de minha parte, lamento pelos lançamentos de discos do fim de ano. A indústria sabe que ainda existe um significativo mercado consumidor de discos e joga pesado para fidelizá-lo constantemente. E a data ainda ajuda. Veja, estamos cinquenta anos depois de um dos momentos mais efervescentes da cultura pop mundial. Vários discos, filmes e livros estão completando um belo jubileu de ouro, ganhando relançamentos e revisões, outro traço do capitalismo reinante, que tenta – e consegue – repetir o impacto de tais obras quando foram concebidas. Falo aqui especificamente do segundo – e homônimo – disco da The Band.

 

Poderia também mencionar outros lançamentos. O quarto disco de Gene Clark, “No Other”, faz 45 anos e ressurge em formato triplo. O período de Bob Dylan em Nashville também faz 50 anos e ganha uma edição caprichada, dentro de sua The Bootleg Series. Sem falar em efemérides menores, como, por exemplo, “Surrender”, terceiro disco dos Chemical Brothers, que ganha uma edição de 20 anos. O segundo da The Band é maior que tudo isso. É um dos álbuns que definiu a música pelos anos seguintes, que quase inventou um gênero – o folk rock – e o amplificou para além da vida. E não é exagero falar isso, é uma simples constatação. Agora, 2019, “The Band”, o disco, ressurge em formato duplo, com um disco cheio de faixas gravadas ao vivo em Woodstock, além de takes alternativos. O primeiro disco é totalmente remasterizado pelo craque Bob Clearmountain.

 

É engraçado porque eu já tenho uma versão remasterizada deste disco aqui em casa. Quem é colecionador e fanático por música, vai entender a necessidade de ter a nova versão. Qualquer registro ao vivo da The Band é, por si, necessário. Formada por quatro canadenses e um americano, o grupo surgiu como The Hawks e logo foi cooptado por Bob Dylan para acompanhá-lo no palco, uma vez que este decidira eletrificar seu som. Entendemos por isso um passo a frente do folk, mas não ainda o folk rock. Tal amálgama de sons surgiu mais tarde. Veio de vertentes formadas a partir dos que os Byrds faziam já em 1966, por sua vez, inspirados totalmente em Dylan. Especialmente, diria eu, quando estes incorporaram Gram Parsons e criaram um álbum chamado “Sweetheart Of The Rodeo”, em 1968. Mas este não era folk rock, era country rock. Sendo assim, o tal folk rock era tão sutil e leve que era preciso capturá-lo com, digamos, jeitinho. E foi o que a The Band fez.

 

O primeiro disco deles, “Music From The Big Pink”, de 1968, já mostravam que Robbie Robertson, Richard Manuel, Garth Hudson, Levon Helm e Rick Danko já estavam à espreita do pássaro. Canções como “The Weight”, clássico da banda e da música pop em todos os tempos, é quase um exemplo perfeito, mas, diante do que fizeram no segundo disco, teleologicamente – como diriam os historiadores – fica mais fácil perceber que ainda não era a totalidade. “The Band”, o disco, é mais que o folk rock personificado. É um retrato de uma América mistica, de passado e presente, de realizações e tristeza. De Vietnã e american dream, tudo ao mesmo tempo, com cara de aula de História do tempo presente. Não é exagero dizer que dele vieram os trabalhos mais legais de gente como Neil Young, CSN&Y, James Taylor, entre outros.

 

E quais são as pepitas de ouro do disco? “Across The Great Divide”, logo de cara, fundindo os andamentos clássicos do rock’n’roll de então, com r&b e algo de novo. “The Night They Drove Old Dixie Down” é o provável exemplo de perfeição melódica de toda a carreira da banda. É uma lindeza de canção com refrão impressionante e letra historiográfica sobre a Guerra de Secessão. “Up On The Cripple Creek” é um milagre de groove e versatilidade, com sintetizadores fazendo som de contrabaixo, pianos, bateria angulosa e vocais entrelaçados. “King Harvest (Has Surely Come)” (sobre a sindicalização de empregados rurais), lá no fim do disco, é outro exemplo de como a The Band sabia fazer canções “dançantes” e cheias de influências negras.

 

O disco extra oferece ao ouvinte um show do grupo em 17 de agosto de 1969, no Festival de Woodstock, pouco mais de um mês antes do lançamento de “The Band”, o álbum. O concerto foi baseado nas canções lançadas na estreia do grupo, mas já trazia uma série de novas composições, mostrando que a carreira da The Band como “artista solo” já estava se consolidando.

 

Felizmente existem os serviços de streaming para nos prover destas informações e maravilhas musicais. E, sim, ainda há o velho mp3 para saciar a fome de completistas. Quem sabe, num futuro próximo, a gente consegue reunir uns caraminguás para comprar a edição de luxo do segundo da The Band? Venha conhecê-lo e descobrir de onde vêm os sonos de bandas que você gosta tanto.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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