Duas vezes Liam Gallagher
Liam Gallagher – C’mon You Know?
(Warner)
52′, 14 faixas
Liam Gallagher – Down By The Rives Thames
(Warner)
63′, 16 faixas
Como se dizia há uns 40, 50 anos, Liam Gallagher está “na crista da onda”. Fará três grandes shows nos próximos dias, sendo dois no Knebworth Festival (sold out nas duas noites) e um megaconcerto no Etihad Stadium, em Manchester, campo de seu time do coração, o Manchester City. Se alguém visse a trajetória do Oasis, jamais poderia dizer que seria Liam – e não Noel – a levar adiante o espírito de grande rock inglês para espaços abertos. Pois é o que ele faz, especialmente a partir de sua estreia solo, com “As You Were”, lançado em 2017. É sempre bom lembrar que ele também esteve à frente de uma banda, imediatamente após seu tempo no Oasis, o Beady Eye, que não rendeu muitos frutos memoráveis. Portanto, é na discografia solo que vemos o desejo de Liam de manter este rockão sem muitas firulas vivo e quicando. E ele vem com dois lançamentos simultâneos para dar cabo desta missão – seu novo álbum de inéditas, o ótimo “C’Mon You Know” e o ao vivo “Down By The River Thames”, gravado a partir de uma apresentação ao vivo na Internet que Liam fez com sua banda, a bordo de um barco no rio Tâmisa. Sim, o homem está impossível.
Ainda que “River Thames” seja previsível, ele é bacana por reunir o material solo de Liam, mesclando-o devidamente com sucessos dos tempos de Oasis. É especialmente legal ouvi-lo cantando hinos como “Champagne Supernova” e “Cigarettes And Alcohol” com tamanha garra e vontade, mesmo que em versões que soam meio estéreis neste registro específico, mas nada que comprometa o resultado final. Aliás, Liam poderia – como fez no Acústico MTV – também inserir uma ou outra cover, mas manteve o jogo no âmbito doméstico, dando ao registro um ar de raridade revelada, algo assim. Já “C’mon You Know” dá prosseguimento aos ótimos trabalhos anteriores e autorais que ele soltou – o já mencionado “As You Were” e o excelente “Why Me? Why Not”, de 2019. Em ambos, Liam mostra duas credenciais marcantes – sua voz totalmente capaz de sustentar seu repertório atual e prévio e, mais que nunca, sua capacidade de compor boas canções. E ainda há mais outro detalhe, um tanto mais discreto e subjetivo – sua predileção por esta sonoridade aberta e grandiosa, mais ou menos soando como o Oasis estaria hoje. Sério, o resultado é tão bacana que Noel não chega a fazer falta.
Liam recrutou convidados interessantes para este terceiro disco. Dave Grohl é o primeiro a chamar atenção, co-escrevendo e participando de “Everything’s Electric”, que tem, ao mesmo tempo, um ar mais moderno de arranjo e um débito estético muito grande com a herança melódica dos Gallagher. Ezra Koenig ex-Vampire Weekend, participa e co-produz “Moscow Rules”, que tem um baita arranjo pianístico e orquestral, que funciona em termos de dramaticidade e de ser uma incursão por um terreno da artesania pop inglesa tradicional que permanecia desconhecido para Liam. E a melhor das três colaborações, “Better Days”, com Nick Zimmer, do Yeah Yeah Yeah’s, que parece uma atualização das incursões psicodélicas e eletrônicas do Oasis no fim dos anos 1990, com a diferença de que o arranjo é muito mais interessante aqui e a melodia encontra Liam com ótima performance vocal, num resultado que evoca passado e presente de um jeito muito harmonioso.
Fora estas colaborações, o álbum ainda tem muito a oferecer. A faixa de abertura, “More Power”, meio que evoca o espírito do clássico stoniano “You Can’t Always Get What You Want”, especialmente pelo uso dos vocais de apoio, mas também oferece uma rara visão de Liam admitindo fraquezas e vulnerabilidades diante do imponderável da vida. A faixa-título, por sua vez, tem o carimbo do “rockão de verão inglês”, com palmas e letra otimista, dizendo que “tudo vai ficar bem, venha com a gente”, num chamado atemporal e ainda eficaz. Há uma ótima incursão pelo terreno do pop mais leve e simpático em “It Was Not Meant To Be”, que tem um arranjo bacana, evocando batidas eletrônicas e piano, tudo muito ensolarado e belo. E tem as duas melhores canções presentes aqui: “I’m Free”, que mistura riffs de guitarra pesados e stoogianos com acenos surpreendentes ao … dub. E tem a incrível “The Joker”, outra belezura da encruzilhada entre pop, rock, presente, futuro e sabe-se lá mais o quê.
Liam é a encarnação mais fiel daquilo que o Oasis tinha de melhor: a eficácia de misturar ótimas canções rock para espaços abertos com uma marca característica e, no meio do caminho, brindar o ouvinte com potenciais hinos geracionais. Talvez o repertório dele não concretize esta última marca, mas neste disco e nos outros, temos verão, belas canções, guitarras e aquela pitadinha de arrogância que tanto amamos. Estamos em casa.
Ouça primeiro: “I’m Free”, “The Joker” e “It Was Not Meant To Be”, “Better Days”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.