Stranger Things apresenta Kate Bush para a Geração Z

 

 

Atenção – este texto pode conter alguns spoilers

 

No final do quarto episódio da nova temporada de “Stranger Things”, a canção “Running Up That Hill”, de Kate Bush, tem importância capital. Podemos dizer que ela literalmente salva um dos personagens da série de ser morto por uma espécie de criatura das trevas, um tipo de demônio, algo assim, chamada Vecna. E toda a construção da sequência em que isso acontece é tão legal que o papel dado à canção de Bush realmente transcende o âmbito musical, passando a fazer parte da já extensa mitologia de “Stranger Things”. Não vamos entrar mais a fundo do que isso, mas, apenas para completar a informação, ela é a música preferida de Max, a personagem vivida pela ótima atriz Sadie Sink. Com a divulgação de “Running Up That Hill” na série, a canção já está entre as mais tocadas no Spotify e alcançou o topo de Itunes.

 

Eu lembro bem de vários outros momentos em que filmes, séries e mesmo anúncios de TV serviram para apresentar canções, especialmente as que já existiam há tempos. “Can’t Take My Eyes Off You”, hit de 1967 de Frankie Valli And Four Seasons, por exemplo, foi tema de um comercial do jeans Wrangler, em que Luciana Vendramini era uma noviça e, após receber a visita de um antigo namorado, que trouxera uma calça jeans, entre fotos e lembranças, resolve largar o convento. Também lembro de “Be My Baby”, clássico das Ronettes de 1964, sonorizando propaganda de outro jeans, o Levi’s, feita em 1989. A mesma canção estivera na trilha sonora de um filme de muito sucesso, lançado dois anos antes: “Dirty Dancing”. Sem falar na maravilhosa apropriação de “Twist And Shout”, sucesso do primeiro álbum dos Beatles, sendo “interpretada” por Matthew Broderick na antológica cena da parada, em “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1986. Não era só no rádio que a gente ouvia música quando não havia Internet. E, quando essas canções faziam sucesso por conta de suas aparições em comerciais e filmes, as emissoras de rádio passavam a executá-las. Atualizando o discurso para 2022, é exatamente o que ocorre com a faixa de Kate Bush e “Stranger Things”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Running Up That Hill” foi lançada no quinto álbum de Kate, o ótimo “The Hounds Of Love”. Uma audição rápida em suas canções mostra o débito que artistas atuais como Florence + The Machine, Tori Amos ou Fiona Apple, só para citar três, têm para com a obra de Bush. E se aplicarmos o vai e vem da história à sua trajetória, veremos que seu primeiro sucesso, “Wuthering Heights”, lançado em 1978, foi devidamente apresentado a um público muito mais jovem já em meados dos anos 1990, quando a banda Angra a regravou numa versão metalizante e melódica. Para muita gente que ouviu a versão dos caras, aquela era uma canção original deles. Só para citar outro exemplo atual, os italianos do Maneskin, sucesso global que virá ao Rock In Rio, fizeram um sucesso astronômico com uma versão de “Beggin'”, outro hit gravado por Frankie Valli And The Four Seasons. Certamente há um contingente ainda maior de pessoas achando que se trata de um sucesso autoral. Ou seja, não somos a tal “aldeia global” que está nas – hoje – velhas teorias da comunicação, somos, sim, bilhões de aldeias globais individuais, afundadas em toneladas de informações, bites e bytes.

 

Se o povo se animar a adentrar as canções de “The Hounds Of Love”, que é aberto, justamente por “Running Up That Hill”, irá se deparar com um clássico esquecido dos anos 1980. Só para termos uma ideia do poder que o álbum teve, ele desbancou Madonna e seu “Like A Virgin” da parada inglesa de discos. Kate também conseguiu fazer sucesso no mercado americano pela primeira vez, o que, sabemos bem, é algo difícil. Ela entrou no Top 40 justamente com “Running Up That Hill”, decidindo também lançar uma série de clipes para acompanhar o álbum, especialmente “Cloudbusting” (minha preferida do disco), no qual contracenava com o ator Donald Sutherland. Era algo tão ambicioso para a época, que o disco saiu com versões em cassete especial e CD (algo impressionante para 1985) e, um ano depois, recebeu um complemento em formato de Laserdisc, contendo extras da gravação e os tais clipes. Em 1997, doze anos depois, o álbum foi relançado em uma versão com faixas-bônus e outakes dos originais, entre eles, a versão estendida de “Running…”. Kate está hoje com 63 anos e pouco aparece na mídia de seu país. Seu último álbum lançado foi o duplo ao vivo “Before the Dawn”, de 2016.

 

 

 

 

Em 1987, Kate reapareceria no álbum de Peter Gabriel, “So”, fazendo um emocionante dueto em “Don’t Give Up”, uma das mais belas canções que Gabriel já escreveu. E, em 1989, ela partiria para mais um ótimo trabalho, “The Sensual World”, mas aí já iremos para outros rumos. Por ora, tenha você visto “Stranger Things” ou não, aceite o conselho da Célula Pop – redescubra o ótimo “The Hounds Of Love” e salve-se também.

 

Em tempo: “Running Up That Hill” já está com 120 milhões de streamings somente no Spotify.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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