Dez anos do melhor Arcade Fire

 

 

“The Suburbs”, o terceiro disco da banda canadense Arcade Fire, completa sua primeira década. É correto dizer que o álbum não envelheceu um dia sequer e conserva seu texto afiado e sua capacidade de servir como dispositivo de deslocamento temporal para seus criadores. A ideia das canções e do disco é revisitar a infância de seus dois cérebros criadores, Win e Will Butler, em sua Austin natal. Esta é uma cidade universitária, moderna – em termos de sul dos Estados Unidos – e com uma cena musical bem legal. Só que a visita dos Butler se dá a uma Austin que só existiu para eles, a cidade na qual cresceram e aprenderam grande parte do que sabem hoje. E, bem, há dez anos. Esta é a mágica de “The Suburbs”, ser nostálgico sem parecer.

 

Sim, porque a sonoridade que o Arcade Fire alcança nessas canções é totalmente moderna e responde pelo melhor que a banda lançou até hoje. Há dez anos, então, nem se fala. Mas o grande lance de “The Suburbs” era o clima de catarse e pazes feitas com o passado que os irmãos Butler imprimiram no álbum. Lembrando que a ideia de “subúrbio” lá em cima não tem nada a ver com a nossa, aqui embaixo. Enquanto nos referimos a eles como partes desprivilegiadas das cidades grandes, os americanos entendem os subúrbios como lugares em que uma classe média vive, geralmente afastada o bastante do centro da cidade, podendo desfrutar de uma vida tranquila, naquelas casas com jardim, dois carros na garagem e sem cercas, pressupondo a ausência de risco de invasão e/ou roubo das casas. E numa dessas, os Butler tiveram sua adolescência, deixaram de ser moleques do high school e partiram pra vida.

 

O disco reflete isso já na capa, na qual um modelo velhusco de Mercedes-Benz coupé é mostrado numa garagem, com uma palheta colorida/psicodélica a enfeitá-lo. É a visão de hoje adentrando o passado e o transformando. Sim, porque o passado muda todo dia, à medida que nossa visão dele também vai se transformando. Se a gente compreender que os tempos – passado, presente e futuro – são móveis e se moldam de acordo com o que quisermos, seremos muito melhores, mas isso é papo para outro dia. O fato é que os Butler ofereceram ao público uma viagem de ida e volta a esta Austin que só eles sabem como era. E nos deram a chance de visitá-la em sua companhia, entendendo o que só eles sabiam. Em alguns momentos a jornada é dolorosa, mas a sensação final é de uma horda de demônios exorcizados.

 

Em termos musicais, “The Suburbs” é perfeito. A faixa-título, envolta numa névoa bowieana com antecedentes de The Kinks embutidos no piano que a conduz, é uma narrativa de como a vida costumava ser. Alguns versos surgem afiados como facas. A antecipação do futuro que temos quando somos jovens se materializa em “quero ter uma filha enquanto sou jovem, para segurar sua mão antes do estrago ser feito”. Ou “as crianças querem ser duronas, mas, nos meus sonhos, ainda estamos gritando e correndo pelos quintais”, ou, ainda em “todas as barreiras construídas nos anos 70 finalmente caíram, não queriam dizer nada”. É um inventário deliberadamente borrado e confuso, como todo relato que se faz da juventude. E é brilhante justamente por isso. Enquanto a letra vai passando, a banda vai transformando a ingênua levada pianística em algo mais sombrio e profundo, com um efeito sensacional ao fim da canção. “Ready To Start”, que mais parece uma canção do The Cure com guitarras mais altas, tem levada mais rápida e fala “eu prefiro ficar aqui esta noite do que sair para fingir que estou bem”. Quem nunca?

 

A ironia também passa pelo presente de quem olha para o passado. O que dizer de “Modern Man”, que fala “espero pela minha chance, eu sou um homem moderno. Espero na fila, sou um homem moderno. Eu espero por uma vez, como um homem moderno”. E uns acenos engraçados que surgem quando já não se espera por mais nada, como a sombra de um vocal neilyoungiano em “Wasted Hours” ou o piano apoteótico de “We Used to Wait”, um dos grandes momentos do álbum, que surge lá pelo final de tudo. Ou o vocal de Regine Chassagne em “Sprawal II (Mountains Beyond Mountains)”, que evoca algo como uma atualização dos vocais de Debbie Harry, a própria Blondie. A caminho do definitivo fim, um retorno da melodia de “The Suburbs”, a canção, com tons cinematográficos e orquestrais e os versos:

 

If I could have it back
All the time that we wasted
I’d only waste it again
If I could have it back
You know I would love to waste it again
Waste it again and again and again

Ou seja, “se eu pudesse ter de volta todo o tempo que passamos, eu apenas viveria tudo novamente. Se eu tivesse de volta, eu adoraria viver tudo ve novo, de novo.

 

É bom chegar na parte da vida em que olhamos em outras direções e nos entendemos bem com nossas diferentes versões e modelos. E isso funciona como a mola-mestra de “The Suburbs”. Como é um disco que lida com o tempo, não espanta que ele seja desafiador e surja como um trabalho realmente atemporal. Uma obra-prima moderna.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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