Desmistificando o Tim Maia Racional

 

Diferente do que muitos acreditam, a fase Racional não representa o melhor do trabalho de Tim Maia.

 

Vamos direto ao assunto: os dois volumes de Tim Maia Racional não são o topo de linha, a cereja do bolo, a última Coca-Cola, ou a derradeira bolacha do pacote que é a carreira do venerável cantor tijucano. A sanha de colecionadores freaks de vinil, críticos musicais com tendência para a malandragem desenfreada e uma boa dose de falta de informação são alguns dos fatores que conspiram para essa noção equivocada.

 

Ninguém discute a relevância de um artista como Tim Maia para a música brasileira. Dono de voz inigualável, carisma inabalável, talento inquestionável, Tim sempre foi um colosso no palco e, quase sempre, em disco. São 30 álbuns, vários compactos e uma enorme procissão de sucessos, numa rara unanimidade de público e crítica. Em vários momentos da carreira, Sebastião Rodrigues Maia foi capaz de forjar uma liga sonora única, na qual havia espaço para ritmos brasileiros (Samba, Forró) e Black Music americana acima de qualquer suspeita, sobretudo Funk e Soul. Tim é desses cantores que podem ser reconhecidos aos cinco segundos de uma canção, seja pelo cuidado e preciosismo que ele tinha com arranjos e instrumentos, como pelo vozeirão na melhor tradição dos grandes mestres da canção negra americana. Tim era, com o perdão da palavra, um monstro.

 

Com tantos discos gravados em tantas fases distintas, sua obra é de difícil aquisição. São vários registros em gravadoras diferentes, além de uma inevitável decadência a partir da segunda metade da década de 1980, quando já não tinha mais a inspiração e o vigor dos primeiros anos, época em que álbuns muito próximos da perfeição sonora foram gravados. Entre a estreia em 1970 até 1975, foram quatro discos homônimos, responsáveis pela construção da própria identidade de Tim como cantor e compositor. Sucessos como “Azul da Cor do Mar”, “Eu Amo Você”, “Primavera”, “A Festa Do Santo Reis”, “Não Quero Dinheiro, Só Quero Amar”, “Você”, “O Que Me Importa”, “Idade”, “Gostava Tanto de Você”, “Over Again” e “Réu Confesso” pertencem a este início avassalador de carreira, na gravadora Polydor. Em 1975, Tim deixou a gravadora para aceitar o convite da RCA, que acenava com a possibilidade de realização de seu grande sonho: um disco duplo. Tim não imaginava, mas estava aberto o caminho para um episódio pitoresco em sua vida, a aproximação com a seita Universo em Desencanto.

 

Durante cerca de seis meses do ano de 1976, o grande cantor viveria uma experiência única, na qual deixaria seu estilo de vida “desregrado”, pautado por noitadas, bebida, drogas e todo tipo de excesso de lado em favor de levar adiante a palavra da “imunização racional”, através dos dois discos “Tim Maia Racional” e um compacto, todos extremamente badalados e cobiçados por colecionadores. Enquanto compunha as canções para o álbum duplo, que já estava em fase avançada de produção nos estúdios da RCA em Copacabana, Rio, Tim ficou sabendo da existência de um guru, uma espécie de pai de santo, que morava em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.

 

Levado pelo compositor Tibério Gaspar. o músico ouviu o “Grã Mestre Varonil” Manuel Jacintho, o líder da seita, que explicou ao cantor que os habitantes do planeta são, na verdade, originários de um outro mundo, perfeito, feliz, mas que foram enviados para cá por causa da “magnetização”, que seria a razão de todos os problemas da Terra. A única saída para essa condição aparentemente lastimável, era a imunização racional, que viria com a leitura de uma série de livros escritos por Manuel, mostrando aspectos da doutrina do Racional Superior, a instância máxima da coisa toda. Tim saiu de lá extremamente afetado pelas palavras do mestre e, a partir dali, iniciou uma nova fase em sua vida.

 

A maioria das canções já prontas para o novo disco de Tim, o tal álbum duplo, tiveram suas letras deixadas de lado em favor de uma nova série de palavras que ele colocaria nas melodias, sempre exaltando o poder do Racional Superior como o farol para alcançar uma dimensão de paz. Obrigou todos os músicos de sua recém-formada banda Seroma (o mesmo nome da editora que fundara, composta pelas iniciais de seu nome SEbastião ROdrigues MAia) a largarem drogas e bebida, além de exigir que todos vestissem apenas roupas brancas. Ele surgia nos ensaios com o cabelo cortado, limpo, vestido de branco e totalmente careta. Entrou numa dieta, começou a perder peso e passou a dormir e acordar cedo? Sexo? Só para procriação – essa lei também foi aplicada aos músicos da Seroma Racional, novo nome da banda de apoio.

 

A RCA não gostou da ideia de ver seu nome vinculado a uma seita maluca e começou a temer pelo pior. As canções foram surgindo e títulos como “Que Beleza (Imunização Racional)”, “Grão Mestre Varonil”, “Quer Queira, Quer Não Queira”, “O Caminho do Bem” e “Contacto Com O Mundo Racional” confirmaram os temores da gravadora. Os shows de Tim passaram a incluir apenas as canções recentes, nada de sucessos dos outros discos gravados até então. Os efeitos do novo estilo de vida começaram a aparecer na voz mais potente, no fôlego maior, na disposição para encarar mais e mais tempo de ensaio. A banda também estava na ponta dos cascos e a interação de Tim com tanto craque contribuía na hora de compor. Diante do inevitável, a RCA recebeu com temor a notícia que os discos passaram a se chamar Tim Maia Racional 1 e 2 e, para surpresa geral dos executivos, o cantor decidiu rescindir o contrato, comprar as fitas já gravadas e lançar os discos por conta própria, visando alcançar o maior número de pessoas na base da catequese boca a boca, de porta em porta. Nessa missão, chegou a mandar livros para Curtis Mayfield, James Brown e John Lennon.

 

Quando os discos chegaram às rádios e emissoras de TV, estava configurado o grande problema: ninguém tocaria aquelas canções cheias de letras desconexas. Ele atravessou Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo na tentativa de distribuir o disco e os livros do Racional Superior. Em poucos casos, conseguia deixar o álbum em lojas menores e na base da consignação. Quem comprou o disco na época foram os fãs mais ferrenhos dele e os devotos da seita. Algum tempo depois, Tim percebeu que havia entrado numa fria.

Quando percebeu a picaretagem implícita, Tim decidiu voltar ao normal e quebrou os discos que estavam prontos, sentenciando as obras ao status de raridades inegáveis. Daí vem o questionamento: são bons porque são/eram raras ou porque possuíam valor? A melhor resposta é “são bons porque tem valor”. Os dois discos racionais (e mais um compacto, lançado recentemente com o nome de “Racional 3”) são bem gravados, muito bem tocados e excepcionalmente bem cantados. Tim Maia já estava na ponta dos cascos mesmo antes da “imunização”, com ela estava no melhor de sua forma vocal desde sua estreia, em 1970. As letras, no entanto, não facilitam. Não é aceitável que a verve romântica de Tim (seu grande tema principal) seja colocada em segundo plano diante de versos como “Eu vim para lhe dizer que na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, o povo está numa relax, numa tranquila, numa boa, lendo os livros da cultura racional” (em “Quer Queira, Quer Não Queira”). Como poucas cópias sobreviveram, o status de item de colecionador foi inevitável. Durante muito tempo, os discos permaneceram privilégio de poucos, com cópias em vinil (Racional vol.1 só foi lançado em CD em 2006 pela Trama e relançado pela Abril Coleções em 2010, junto com o volume 2 e o raríssimo Volume 3) cotadas em pequenas fortunas. Talvez o fetiche tenha se sobreposto à qualidade.

Sua percepção da vida e das agruras que enfrentava na condição de negro, obeso e outsider é seu maior trunfo lírico. Mesmo que a alegação (verdadeira) que o episódio racional foi igualmente sincero, não dá pra reduzir a excelência da obra de Tim a um período de pouco menos de um ano, em detrimento de outros discos tão sensacionais.

 

Discografia Não-Racional Selecionada:

1970 – Tim Maia
1971 – Tim Maia
1972 – Tim Maia
1973 – Tim Maia
1976 – Tim Maia
1977 – Tim Maia
1978 – Tim Maia Disco Club
1979 – Reencontro                                                                                                                                                                         1982 – Nuvens
1992 – Tim Maia ao Vivo

 

A lista da Rolling Stone Brasil coloca Tim Maia Racional vol.1 em 17º lugar na lista de 100 Melhores Discos Brasileiros de Todos os Tempos. O segundo volume ocupa o 49ºlugar, enquanto seu disco de estreia, homônimo, de 1970 aparece em 25º e o álbum de 1971, o segundo de sua carreira, figura na 75ª posição.

 

Texto originalmente publicado no Monkeybuzz, em 27 de fevereiro de 2014, disponível aqui.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

5 thoughts on “Desmistificando o Tim Maia Racional

  • 14 de março de 2024 em 01:27
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    Poxa, citou a letra errada, é “Guiné Bissau Moçambique e Angola, numa relax numa tranquila numa boa, lendo os livros da cultura racional…”
    Entendo q não pode se considerar necessariamente como a melhor obra do Tim maia, até pq essa avaliação passa muito pelo crivo pessoal. E ele produziu muita coisa boa, além desses álbuns. Mas classificar as letras como inaceitáveis, ou pontos suficientemente negativos para não escutar, é absurdo!!! As letras românticas são de mesma qualidade, só são letras diferentes… Eu adoro esses álbuns, foi uma época doida mas sadia do Tim maia, inclusive no som dele! Não poderia ter letras melhores para esse som, apesar de não me fazerem muito sentido quando analisadas o conteúdo além da musicalidade?

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    • 14 de março de 2024 em 06:49
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      A gente não está negando o valor dos álbuns, mas estamos classificando-os como “fora da curva” dentro da carreira do Tim. Em termos líricos, o disco só pode ser entendido dentro do contexto específico do período, o que, por si só, encurta o alcance das letras. Uma olhada na vida do Tim vai apontar a frustração sentimental como o grande motor criativo dele. Repito, os Racionais são bons discos, mas longe de serem o que ele fez de melhor. Abraço e obrigado pelo comentário.

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  • 27 de novembro de 2019 em 12:25
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    Com o Tim Maia aconteceu comigo o mesmo o que aconteceu com o Miltom Nascimento. Peguei grande birra dos dois por conta da fase oitentista que ouvia na minha infância nas rádios. Músicas que eu achava deprê demais como “Me dê motivo do” Tim Maia e “Coração de estudante” do Miltom. Felizmente depois de velho conheci a obra dos anos 70 dos dois e essa percepção mudou, hoje sou fã dos dois.

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  • 18 de novembro de 2019 em 23:03
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    Obrigado pelo comentário, Jean! Sim, é um crime endeusar tanto estes dois discos em detrimento do restante da carreira do Tim, mas o que me deixa triste é passar a imagem dele como um lunático despirocado qualquer. Valeu!

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  • 18 de novembro de 2019 em 22:10
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    Excelente crítica! Sempre li a respeito do trabalho sublime que eram os dois albuns “Racionais”, mas, ao ouvi-los, sempre senti um estranhamento em relação às letras, pouco acessíveis (bem diferentes da obra do Tim). Nunca fez muito sentido pensar que aqueles dois álbuns eram os melhores de Tim, apesar de sua voz estar realmente mais límpida e bonita, ali.

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