“Nope”: muito mais do que parece

 

 

 

Jordan Peele é um provocador. Digo isso no melhor sentido que o termo pode comportar. Seu novo filme, “Nope” (traduzido aqui como ‘Não! Não Olhe!”) está em cartaz desde ontem e traz consigo a responsa de manter a filmografia do diretor e roteirista americano no mais alto nível. A culpa é dele mesmo, que nos deu duas pequenas obras primas do terror/suspense moderno: “Corra” e “Nós”, lançados em 2017 e 2019, respectivamente. Com “Nope”, Peele expande sua área de atuação para um terreno mítico de significados e sentidos, mantendo o teor altíssimo de crítica social que ele incorporou em seus dois longas anteriores. “Nope” é um espetáculo dos mais estranhos. Mas é um espetáculo.

 

 

A história, assim como nos outros filmes, tem protagonistas negros. Aqui, a trama gira em torno da família dos Haywood, notabilizada por ter um rancho de criação e adestramento de cavalos para abastecer a indústria cinematográfica em Hollywood. Localizado na comunidade de Água Dulce, o rancho é dirigido por Otis Jr (Daniel Kaluuya), que assumiu o negócio após a morte misteriosa de seu pai. Ele também conta com a ajuda de sua irmã, Emerald (Keke Palmer), que o ajuda nas apresentações e relações públicas, já que Jr se sente mais à vontade com os cavalos em meio às imensas paisagens do rancho. Perto dele, mais adiante, está o Parque de Diversões de Jupiter, que pertence a Ricky “Jupiter” Park, um ex-ator mirim, que viveu um trauma impressionante no set de filmagens de uma série para TV em 1998. “Jupe” dirige um show misterioso em seu parque, chamado “A Laçada Espacial”, no qual é invocada uma … força da natureza.

 

 

É neste cenário de vastidão na paisagem, marasmo absoluto e da iminente falência do rancho e dos negócios dos Haywood, que “Nope” se desenrola. Logo nas duas primeiras sequências, o espectador tem a mais absoluta certeza de que está entrando num terreno em que há muita, mas muita mesmo, coisa errada. Os personagens exibem uma curiosa e angustiante conformidade com os fatos e, quando temos as primeiras evidências visuais do que está, de fato, errado por ali, as reações deles vão nos dando mais e mais angústia. O que está errado é que há um OVNI rondando o rancho e o parque de Jupe, mas nada é exatamente claro. Os personagens e nós, espectadores, vão descobrindo aos poucos do que se trata, ainda que tudo pareça um produto da imaginação – deles ou nossa.

 

 

A direção de Peele é magnífica, não só pelos takes e sequências ambientados à noite e na imensidão do rancho, mas também pelo uso inteligente das tomadas do céu e das nuvens, que se mostram muito importantes ao longo do filme. A trama que se estabelece entre os personagens vai evoluindo em ritmo de flashbacks e pequenos avanços no tempo e nada fica sem uma explicação convincente no final. Na verdade, Peele aproveita esse cenário surreal e visualmente belíssimo para falar sobre exposição da vida alheia, da troca de popularidade por conta de valores como ética e respeito. E também fala sobre como nada é o que parece. Ou não.

 

 

Acordei na manhã seguinte à sessão de “Nope” com a certeza de que havia sonhado com as imagens da paisagem do rancho dos Haywood. De fato, a câmera de Peele nunca esteve tão técnica e apurada, enquanto a trama, ainda que tenha alguns problemas, especialmente no fim, mantém o nível. Não sei dizer se “Nope” é mais bacana que “Corra” ou “Nós”, duas obras-primas, mas, se não for, está ali, muito perto. Não deixe de ver no cinema e, caso não engula o final, dê uma segunda chance ao filme. Lembre-se: em “Nope”, grande parte do que aparece na tela não é, necessariamente, apenas o que se vê.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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