Gerson King Combo – O Filme

 

 

 

Terça-feira, dia 15 de agosto, Botafogo, Rio de Janeiro. O Estação Net, ex-Estação Botafogo, está lotado. Gente na calçada, o corredor que liga as salas, completamente abarrotado, um clima de grande estreia no ar. Não é pra menos: é a noite em que o documentário “Gerson King Combo – O Filme”, de David Abadia, será exibido pela primeira vez no Rio de Janeiro. O biografado, Gerson King Combo, assiste a tudo lá de cima, feliz com o reconhecimento e a visibilidade. Afinal de contas, ele foi o Rei do Soul Brasileiro e ajudou a divulgar a beleza e o orgulho negros nos anos 1970, fazendo parte da trincheira na qual estavam os divulgadores e donos de equipes de som do subúrbio carioca, gente como Dom Filó, Mr. Funky Santos e Paulão Black Power, entre muitos outros. Ali, contra o preconceito, a burrice e o governo civil-militar, esses heróis falavam em autoestima, beleza negra, direitos e meios para sobreviver num ambiente tão hostil. Sim, por trás do mis-en-scene de Gerson, de sua alegria exuberante, de sua indumentária real, estava um homem fazendo história, no tempo certo.

 

 

 

 

O documentário de David Abadia levou 14 anos para ser concluído. Realizado no peito e na raça, lutando contra todo tipo de dificuldade – escassez de recursos, pandemia, falta de políticas de fomento, governo golpista, governo genocida – a equipe de produção manteve-se firme. Ao lado de David, estiveram o produtor executivo Belisário França, o diretor de produção Mauricio Eiras e o pessoal da Giros Filmes, além do próprio Dom Filó, dono e idealizador da Cultne, talvez a maior entidade afro-brasileira de acervo documental existente. Esse time resistiu a tudo e realizou uma homenagem justíssima, nada piegas, totalmente verdadeira a Gerson e seu legado. O resultado emociona. “Gerson King Combo – O Filme” é uma homenagem justa e merecida. Como filme também funciona, muito por conta da narrativa simples que Abadia adotou: deixar o biografado falar e colher boas imagens com ele em seus elementos naturais – o palco e a vida em Madureira, subúrbio da Zona Norte carioca. Como Gerson era ótima praça, figuraça e gente como a gente, sua presença na tela é o que basta.

 

 

Mas o filme oferece mais: depoimentos de muitas pessoas que foram influenciadas pela música do Rei. De Marcelo D2 a Mr.Catra, passando pela atriz Zezé Motta, o próprios Dom Filó, Paulão Black Power e Funky Santos, a irmã do ídolo – Dona Diva – que estava presente na sessão. Aliás, a quantidade de pessoas no local fez a organização agendar uma segunda exibição do documentário, mostrando a força da história de Gerson junto a um público esclarecido a respeito da música e da luta constante do povo negro em busca de visibilidade e voz. A Cultne TV estava presente, registrando os momentos e tudo correu muito bem. Ali, no meio de uma minoria privilegiada, me vi feliz por fazer parte deste grupo específico de pessoas que, de alguma forma, se unem nesta luta. Me lembrei da minha Dissertação de Mestrado, defendida em 2017, na qual pesquisei a interseção da cena dos bailes do subúrbio carioca com a luta contra a ditadura civil-militar. Em que medida tais caminhos se cruzavam e de que forma o governo ditatorial serviu como porta-voz de todos os preconceitos possíveis dentro da nossa triste formação como sociedade latino-americana que queria – e ainda quer – ser europeia, branca, desigual.

 

 

Durante a pesquisa para o Mestrado, entrevistei o próprio Gerson. O processo de aproximação teve início na saída de um show incendiário que o Rei deu em 26 de agosto de 2016, no Teatro da UFF. Ali, na porta do Teatro, simpático, solícito e falando como se nos conhecêssemos há vinte anos, Gerson aceitou o convite para ser entrevistado, me deu telefone, contato e me pediu para que marcássemos no dia seguinte. Dito e feito. Em algum ponto do início de setembro, ele me recebeu em sua casa, em Madureira, para uma conversa generosa e longa sobre sua carreira e vida. Me mostrou roupas, discos, me convidou para o almoço – convite do qual declinei e até hoje me arrependo – e me ajudou bastante na conclusão da minha pesquisa. Meses antes, Dom Filó me recebeu em seu reino, o Clube Renascença, no Andaraí, para uma conversa igualmente generosa sobre sua vida e trajetória. Ambos estavam presentes ontem, só que em planos diferentes. Filó, cabelos brancos, voz de Barry White inatacada pelo tempo, foi saudado merecidamente por todos. E o Rei, como eu disse, lá em cima, vendo a tudo com visão privilegiada e seu inabalável bom humor.

 

 

Se há algo que “GKC – O Filme” consegue é passar a dimensão exata da doçura e alegria que Gerson transmitiu durante sua vida. Sua música, mesmo sendo um grito de luta, também é exuberante, importante, adorável. E tudo isso está na tela, no filme e sai impresso na alma das pessoas. Como se o próprio Gerson nos abraçasse durante a sessão. Se é isso que você espera de um longa, “Eu Te Amo Brother” é para você. Não perca, corra atrás dele nos circuitos alternativos, compartilhe, espalhe a ideia porque, se formos esperar pelas grandes mídias, o filme jamais sairá de sua bolha. É um trabalho de formiguinha que precisamos levar adiante.

 

 

Assuma a sua mente, brother, sister.

 

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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