Clandestino – 20/21 Anos

 

Pense no fim de 1998 e início de 1999. Os celulares, basicamente, só faziam ligações. A Internet não era algo massivo como hoje. O World Trade Center estava de pé. Parece que foi há uma eternidade, mas não. Neste tempo, quase na passagem do milênio, Manu Chao lançou seu primeiro disco solo: “Clandestino”. A história por trás do álbum é sensacional: Manu, francês de nascimento, ex-líder do grupo Mano Negra, embarcou numa viagem pela América Latina, do sul ao norte, passando por vários lugares, captando sons, andando de trem, peregrinando, pegando carona, conhecendo pequenos povoados esquecidos, indo e vindo. Depois, misturando tudo com sua própria vivência, gerou um feixe de 16 canções. E fez história.

 

Naquele tempo, cantando em vários idiomas – espanhol, português, francês, inglês, galego – ele vendeu 3 milhões de cópias de “Clandestino”. Um feito, dadas as circunstâncias e o público. Quem estava interessado em saber sobre as agruras de povos oprimidos historicamente, tentando improvisar na rua, nas comunidades carentes, dentro da lógica do mais rico, do mais forte, do fluxo de uma mão, rumo ao antigo Primeiro Mundo? Quase ninguém, apesar da quantidade de vítimas desta lógica ser enorme. Pois Manu cantava isso, o tráfico humano e os obstáculos das fronteiras. Gente batendo de cara nos muros da Europa, dos Estados Unidos, entre os próprios países oprimidos…E o fazia com graça, ainda que sentindo profundamente a dor dos passantes.

 

Hoje, quase 21 anos depois, “Clandestino” tem ares proféticos. Se olharmos com calma e lucidez, veremos que o problema que ele aborda, sempre existiu: as migrações humanas pelo planeta. Sejam motivadas por conta do meio ambiente ou pelas guerras ou pelas exaltações religiosas, o homem sempre foi um bicho em movimento. O problema é que este fluxo, que gera cultura, desenvolvimento e mudanças, em maior ou menor escala, é impedido por conta dessas lógicas políticas e sociais a que estamos acostumados. E isto está vigente em 2019 como poucas vezes na história recente: gente sendo impedida de cruzar fronteiras, tratadas como animais, arriscando a vida para chegar em outros lugares, abrindo mão de suas origens e seu solo. E acontece em todas as partes do planeta. Manu pode ser sido apenas um observador atento dos caminhos latino-americanos, mas conseguiu dar uma declaração estética praticamente perfeita a este respeito.

 

Neste espaço de tempo entre o lançamento do disco e o nosso presente, podemos dizer que o capitalismo entrou em mais uma crise, os setores conservadores estão muito mais fortes, os governos de países poderosos foram dominados por gente que prioriza a criminalização do aborto ao mesmo tempo que pede a pena de morte. Ou seja, é um mundo duro, mau, que não abre portas. O discurso de “Clandestino” tornou-se ainda mais afiado e contundente, mostrando que a desumanidade é uma constante histórica tristemente comprovada. Ainda que as canções sejam atualíssimas, Manu decidiu celebrar a maioridade do disco com um relançamento, trazendo mais três faixas.

 

Tal movimento é bom porque não descaracteriza o original, que é irretocável. Das novas canções, “Bloody Bloody Border” e “Roadies Blues” ampliam o espectro das faixas, levando um pouco mais de desilusão e tenacidade aos que estão neste trem, rumo a algum lugar. E há também uma nova versão da faixa-título, com a cantora trinitina Calypso Rose, oferecendo tonalidades de rumba e salsa ao original.

 

“Clandestino” segue sendo o disco que tem canções maravilhosas como “Desaparecido”, “Lágrimas de Oro” (esta com samples de narração de jogo do Flamengo), “Welcome to Tijuana”, “Minha Galera”, “Luna y Sol”, entre outras, todas interligadas como se fossem uma transmissão ilegal de alguma rádio pirata. Só quem já pisou em uma, sabe do que estou falando. O disco permanece como um grito de resistência de uma América Latina superlativa, que tem desde forasteiros como David Byrne – e o próprio Manu – a gente como Gabriel Garcia Marquez, Emiliano Zapata, Gustavo Ceratti, Jorge Ben e tantos outros formadores de cultura.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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