Carnaval – Fé na gente
Pagã, há muitos anos elegi o Carnaval como religião: sou devota e fiel defensora de sua liturgia. Não me encanta, com todo o merecido respeito, o Carnaval alegórico, ensaiado e televisionado da Sapucaí. Entendo a doação e o fascínio daqueles milhares de pessoas, especialmente as que vivem o dia a dia das comunidades e entregam corpo e alma para estar ali. Reverências e vida longa. Mas o que me fascina desde 2001 – meu primeiro Carnaval em terras cariocas – é a festa espontânea das ruas. O bloco do acaso, feito por mim e por você. A festa do “se marcasse não encontrava nunca!”, uma das minhas frases cariocas preferidas. É no bloco cara de pau que o discreto vira destaque, o dress code cede à fantasia, toda a malícia e a lascívia guardadas nos outros 11 meses se mostram, livres. Onde a tímida vira vedete, o boy da empresa exibe o corpo que o corporativo esconde, os olhares contidos dão vez aos olhos fixos de escândalo: bem mais que os 3 segundos permitidos no dia a dia. É quando o Rio torna a ser aquele que os antigos contam, da simpatia-quase-amor, da tal bossa, daquela tal malandragem.
Mas há mais que a doce libertinagem a celebrar nas procissões profanas do Momo. O que torna o carnaval de rua mágico é que, para nos brindar com brilho, calor, a pele suada, sim, de uma amiga ou um amigo encontrado ao acaso, essa homeostase: beijos, sorrisos, catarse, ele nos pede, em troca, somente a tolerância. Para viver o melhor de um bloco, zanzar, rir, subir uma árvore, rasgar a tediosa máscara civilizada do resto do ano, tirar a roupa e vestir a fantasia – muito mais real – não precisa credencial, convite ou abadá. Dinheiro, só pra beber no isopor. O Carnaval de rua espera de nós partilhar o espaço público, que é nosso, com centenas de milhares: milhões de outros. E só.
Ali não importa quem você é ou o que faz: andamos, cantamos e pulamos juntos, no ritmo que eriça a pele, na mesma direção, como um corpo só – ou em muitas, nos blocos que se espalham em sub-blocos sem fim. Acordamos às seis da madrugada (ou às cinco, se a fantasia exigir) para estar às sete na concentração. Tenho um amigo, da minha terra, que brinca: o único momento em que o carioca é pontual é no Carnaval. Como discordar? O suor, presente nos momentos emocionantes da vida, só confirma a força desse encontro. Ninguém diz, como no resto do ano “não me abraça, não, que eu tô suada!”. Quem não está suada no Carnaval nem é gente.
Eu entendo o que eles odeiam no Carnaval. É preciso, sim, um bocado de paciência, empatia, #PAS. Nesse encontro de multidões, doam-se sorrisos e gargalhadas, brinca-se com estranhos, trocam-se dicas, cede-se o banheiro ao unicórnio mais apertado. Driblam-se problemas – e chatos, também, que Deus dá. Mas na maior parte do tempo basta confiar, acreditar, respeitar, ceder – tudo que está fora de moda, mas que procurando tem.
O Carnaval de rua, cada vez mais cercado por uma política carola raivosa, é a insistência do que, mesmo morando em metrópoles egoístas, ainda temos de mais humano em nós. Pra gostar do Carnaval, enfim, é preciso gostar de gente – e pra caralho. Um brinde a quem, com tantos motivos para desistir, ainda gosta. Um brinde a nós, destaques do Carnaval de rua.
Sobre a foto: O saudoso bloco Sassaricando, com o elenco do musical de Rosa Maria Araújo, que arrastava uma multidão na Praça Roosevelt (Glória), em 2012.
Crédito: Táia Rocha.
Táia Rocha tem 34 anos, é carioca voltarredondense, jornalista – seja lá o que isso for – e só perdeu 1 Carnaval na vida — porque estava internada.