Pelo cancelamento da burrice, enquanto é tempo

 

 

A guerra na Ucrânia vem adquirindo características midiáticas impressionantes. Muito além das questões geopolíticas, digamos assim. Enquanto as tropas russas avançam sobre o território ucraniano, num movimento que merece uma atenção e um entendimento muito maiores do que a mídia hegemônica brasileira vem oferecendo, setores da sociedade mundial vêm demonstrando reações impressionantes. O “cancelamento” russo está em andamento e beira o inacreditável, porém, passível de explicação. Começou com uma instituição de ensino italiana, que suspendeu curso que ofereceria sobre Dostoiéwski. Depois vieram as sanções aplicadas a atletas paralímpicos russos e à seleção de futebol russa, banida da Copa do Mundo do Catar. Em seguida, a debandada de marcas e grifes ocidentais do mercado russo – McDonalds, Gucci, Netflix, entre outras. Tudo isso sem falar nas sanções econômicas que os países ocidentais têm aplicado à Rússia. Nada disso é mais sério e constrangedor que a decisão do … Bar da Dona Onça, restaurante do centro de São Paulo, situado no famoso Edifício Copan, que resolveu banir o … estrogonofe de seu cardápio.

 

Sim, é isso mesmo. Não é mentira.

 

Janaína Rueda, dona do local, tomou a decisão de retirar do cardápio o estrogonofe de carne. Com isso – ela declarou à Folha de São Paulo – espera contribuir para o protesto contra a Rússia e acha que, se todos se unirem, é possível fazer alguma coisa. “É só enquanto a guerra continuar. Depois o prato volta pro cardápio”.

 

É ou não é inacreditável?

 

Há muito tempo o estrogonofe – cuja origem é comprovadamente russa – foi  adaptado à realidade nacional e vem sendo modificado, como tudo que é cultural e apropriável. É o picadinho de carne de segunda, com ketchup Arisco e creme de leite Itambé dos almoços de família, gente!  Já não é mais um “prato russo”. Nem adiantaria falar isso para Janaína, verdade seja dita. O que parece é que uma onda de estupidez inacreditável tomou conta da sociedade brasileira e mundial, que não parecem capazes de discernir as esferas de atuação de expressão de opiniões. Tampouco não parecem capazes de agir sem esperar algum retorno midiático em troca. Se fosse, digamos, o hipotético Boteco do Zé, que precisa loucamente dos caraminguás mensais para manter-se, a banir o estrogonofe, fico pensando se alguém seria capaz de notar. Mas, como é o Bar da Dona Onça, famoso restaurante paulistano, a agir dessa forma, o retorno da imagem é certo, tanto que nós, um site de cultura pop, estamos aqui falando sobre o assunto.

 

Banir o estrogonofe de um cardápio popular por conta de uma guerra sobre a qual as pessoas não têm a menor ideia das razões ou motivos, é uma poderosa metáfora para os nossos tristes tempos. Nenhuma guerra é decente ou justa, sabemos bem. Não há vencedores na guerra, quem vence é a própria guerra, porém, tal acirramento de postura diante da questão ucraniana me faz questionar o porquê de nunca termos visto boicotes semelhantes a americanos, israelenses, franceses, ingleses e outros povos que cometeram atrocidades humanas recentemente no planeta. Alguns ainda cometem. Qual o sentido prático então de banir o pobre prato do cardápio?

 

Veja, não é o caso de esperar que todo mundo desenvolva, subitamente, senso crítico e questione a presença da Otan no mundo após 1991. Ou a legitimidade dos eventos de 2014, que desencadearam reações russas contra as mudanças na política ucraniana – se não sabem, vão se informar, por favor. O que está acontecendo na Ucrânia é uma guerra imperialista, aos moldes do que tivemos no mundo no século 19, início do século 20, que levou o planeta à Primeira Guerra Mundial. Dois blocos capitalistas estão em disputa pelo comércio mundial – os Estados Unidos e seus parceiros de um lado, a Rússia, talvez a China, do outro. E quando dizemos “parceiros” dos americanos, estamos incluindo aí o nosso pobre Brasil, um terreno baldio de possibilidades, colocado no colo dos ianques a partir do golpe de 2016.

 

Qual será o próximo passo? Demolir as montanhas russas nos parques? Cancelar o Renato Russo?

 

Banir estrogonofes é ter certeza que a estupidez campeia pelo país. Parabéns aos envolvidos.

 

ATUALIZAÇÃO em 09/03/22, 8:40 – parece que o Bar da Dona Onça voltou atrás e recolocou o prato no cardápio. Dirão que se arrependeram, mas, certamente terá sido pela onda de zoações que tomaram conta das redes sociais. Se servir para que aprendam algo, tá valendo.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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