Cake – Correndo por fora em 1994

 

 

 

 

Se você frequentava as baladas de uma grande cidade brasileira nos anos 90, certamente saracoteou ao som de “Never There” e “I Will Survive” (esta, uma versão para o hit disco de Gloria Gaynor). Essas músicas não estavam no primeiro álbum da Cake, mas é nele, mais do que em qualquer outro, que a proposta da banda se expressou com mais nitidez.

 

 

 

Estados Unidos, 1994

Tanto o sucesso do grunge (com uma segunda geração de bandas e abrindo espaço para um revival do punk rock) quanto as mudanças na cena do metal colocaram novas expectativas de volume e produção. As estreias em álbum da Green Day e da Korn podem ser vistas como emblemáticas de duas tendências que cabem nessa descrição. Não por acaso, a Green Day participa dos dois principais festivais daquele ano, o Woodstock e o Lollapalooza (este também com a presença da Korn). Mesmo uma banda que destoava dessas tendências, a Weezer, outra que lançou seu primeiro álbum em 1994, fazia um som robusto.

 

Motorcade of Generosity, a estreia da Cake, um quinteto de Sacramento, Califórnia, mostrava outras possibilidades para o rock alternativo. Era uma espécie de alternativo ao alternativo, de que outro exemplo seria a Pavement. No caso da Cake, a opção por um som diferente das expectativas de volume e produção dominantes apresentou-se como uma estética voluntária, refletida na arte retrô das capas de álbuns e singles.

 

Em Motorcade, a Cake soa como música ambiente de um cabaré inebriado pela fumaça. Ou que poderia ser ouvida em calçadas, sem precisar de amplificação. O principal responsável por essa proposta é John McCrea, criador das letras e de boa parte dos sons da Cake, além de ser o cantor e violonista. Em 1994, tinha 30 anos, com uma longa estrada atrás de si.

 

Nos anos 80, McCrea tocou em várias bandas e também desenvolveu trabalhos solo. No final da década, foi tentar a sorte em Los Angeles e seu contato com o showbizz não foi exatamente feliz. Voltou em 1991 para Sacramento e conseguiu convencer quatro músicos a saírem de outras bandas que frequentavam o circuito de bares na cidade: o guitarrista Greg Brown, o baixista Shon Meckfessel (substituído, depois da gravação de uma fita cassete com duas músicas, por Gabriel Nelson) e o baterista Frank French, além do trompetista Vicent DiFiore.

 

Em 1993, a própria banda bancou a gravação de um EP com duas faixas, que se juntaram a outras onze que recheiam o álbum de estreia. Sua repercussão levou os rapazes a assinar contrato com a Capricorn, um selo independente, o que permitiu a reedição de Motorcade of Generosity no mesmo ano de 1994.

 

As sessões de gravação ocorreram ainda em 1993 no Pus Cavern, um estúdio de Sacramento. A produção foi assumida pela própria banda. Se descontarmos a ajudinha de um amigo em alguns backing vocals, tudo foi feito pelos cinco músicos (Brown assumiu também os teclados). Em nove faixas, Todd Roper e Victor Damiani substituíram French e Nelson, consolidando a formação que gravaria também o segundo álbum.

 

Em sete das treze músicas de Motorcade, o que dá o tom é o clima de honky-tonk almejado pelo quinteto quando optou por se distanciar do som robusto que dominava as paradas. O country é a base principal (McCrae cita como influências importantes nomes como Hank Williams e Buck Owens), mas com levadas que remetem ao mambo e aos conjuntos de mariachis. Para isso o trompete de Di Fiore é um elemento imprescindível, não à toa destacado na capa do álbum.

 

“Comanche” é a primeira faixa, e já sentimos os efeitos do duo de violão e guitarra, a saliência do trompete e o baixo e percussão lembrando um bluegrass. Quando chega o coro, difícil não pensar em uma tequila como acompanhamento. O mesmo clima, com mais intimismo, aparece em “Up So Close”.

 

Em Pentagram, o country mostra toda a força de sua influência no som da banda. Mas a guitarra de Brown “puxa” bastante para o rock’n’roll. Brown também toca órgão nessa faixa, em um estilo retrô que reaparece em “I Bombed Korea”.

 

A guitarra rock’n’roll é mais forte em “Jesus Wrote a Blank Check” e no solo de “Haze of Love”, ambas com levada country. Mas dá para dizer que na segunda esse country está bem temperado por uma sensibilidade new wave (afinal, trata-se de uma banda de rock que cita Devo como uma de suas inspirações), que ganha a dianteira na melodia pop de “Ain’t No Good”, a faixa que encerra o álbum.

 

As demais músicas de Motorcade contracenam com as anteriores, mostrando o lado da banda mais influenciado pelo soul. A segunda faixa, “Ruby Sees All”, é toda cheia de groove, expondo uma construção apreciada por McCrae: a guitarra faz uma melodia, o vocal faz uma outra e o trompete faz uma terceira.

 

“Jolene” tem um riff de violão e inserções de guitarra que são indiscutivelmente funk. A percussão ganha mais peso, especialmente na longa parte final, que mais parece uma jam levada por um coro de vozes, algo que a banda curtia fazer em seus shows.

 

“Your Part the Waters” é também funk, com o trompete remetendo aos sons (esses, muito mais encorpados) das bandas de Benny Goodman (lembrando que Di Fiore tocava em um conjunto de jazz antes de compor a Cake). Esse tom orquestral aparece também em “Is This Love?”, na qual o destaque vai para o baixo de Damiami, seguido pela guitarra rock’n’roll de Brown. Seu peso pode ser conferido na versão ao vivo incluída em B-Sides and Rarities (2007).

 

“Mr. Mastodon Farm” também é groovy. Nela distinguimos bem o estilo vocal de McCrae, meio cantado, meio falado, ao mesmo tempo limpo e reticente. Há semelhanças com “Rock’n’Roll Lifestyle”, igualmente sustentada por um riff no violão amplificado e distorcido. Nela aparece o vibraslap, instrumento de percussão que se tornaria uma das marcas da banda.

 

“Rock’n’Roll Lifestyle” foi a faixa mais destacada de Motorcade, seguida por “Jolene” e “Ruby Sees All”. As três foram lançadas como singles, mas “Rock…” veio antes do álbum e foi a única a ganhar um videoclipe. A simplicidade do arranjo, com os solos de guitarra exagerados e muitos gritinhos, acompanha a letra engraçada que lamenta a relação superficial e exibicionista com um estilo de música, mesmo que ele pareça rebelde. Em parte emulando o som que era objeto da crítica, o texto era uma espécie de declaração de princípios.

 

“Ingressos para shows e drinks em clubes, às vezes para músicas de que você nem ouviu falar” são versos dessa letra. Em outros, ela zomba do gosto por guitarras espatifadas e por jaquetas de couro, itens de uma cumplicidade ridícula entre rock stars e seus pretensos fãs. McCrae arremata: “Excesso não é rebelião… Você está bebendo o que eles estão vendendo!”.

 

No vídeo, o vocalista incorpora o que parece ser um imperador romano que comanda personagens representados por outros integrantes da banda. Tudo é ridículo e pouco verossímil, em um cenário igualmente artificial – uma cidade em miniatura que realmente existe em Sacramento.

 

“Rock’n’Roll” expõe uma faceta de crítica cultural que marca toda a trajetória de McCrea. Sua única música lançada anteriormente à formação da Cake é um ataque a uma usina nuclear que existia perto de Sacramento. Ele se tornou um ativista em questões sociais e ambientais. Atualmente, no website da banda, podemos consultar um mapa de árvores plantadas com mudas doadas em shows.

 

Em Motorcade, ao menos mais três faixas desenvolvem críticas culturais. “Comanche” (“Se você quer ter cidades, precisa construir estradas”) refere-se aos custos da civilização, tanto em um sentido literal para povos indígenas, quanto em um sentido figurado para uma banda de rock fora dos padrões.

 

“You Part the Waters” brinca com a falta de reciprocidade e justiça, especificamente no universo da música. “I Bombed Korea” assume a voz de um veterano de guerra lamentando-se em um bar: “não sabíamos se era certo ou errado”…

 

Outras duas letras não deixam de tecer comentários sociais, mas de um modo menos direto. “Jesus Wrote a Blank Check” pede para adiar a morte tergiversando com argumentos religiosos. “Pentagram” menciona sacrifícios humanos como parte dos rituais do que parece ser uma seita. Em shows, McCrea introduzia essa música ironizando a importância do assunto, que se tornara motivo de pânico nos EUA.

 

Outro tema que atravessa Motorcade é o das relações amorosas. Se é que são amorosas, como literalmente questiona “Is This Love?”. Nessas letras “românticas”, há várias camadas: sofrimento e/ou dúvida, mulheres enigmáticas, insegurança masculina, tudo embalado em um comentário irônico e às vezes sarcástico.

 

“Ruby Sees All” prevê tempestades depois que essa mulher descobrir o que está mal escondido pelo seu amante. “Jolene” é outra mulher, talvez aquela mencionada no clássico country que receberia um cover da White Stripes, mas em uma versão muito mais incerta para o sujeito que conta sua história.

 

“Ain’t No Good” é mais direta em suas desconfianças, que são dirigidas a alguém encantado por uma mulher. “Haze of Love” é a letra perfeita para uma ressaca amorosa, retratada de modo tão dramático que se torna ridícula. É também a promessa da reerguida, como faria, no álbum seguinte, “I Will Survive”, a famosa versão da Cake sobre a qual pesou a acusação de uma inadequada ironia.

 

Se ironia há em “Up So Close”, ela recai sobre outra coisa. Se estar perto é a melhor maneira de ver, o que acontece quando estamos perto demais de outra pessoa? “De tão perto nunca consigo te ver / Microscópio, nunca tenho certeza se ainda é você”.

 

Por essa perspectiva, essa faixa se comunica com a letra de outra, essa nada a ver com relações amorosas. Aparentemente nonsense, “Mr. Mastodon Farm” sugere que precisamos nos levantar da poltrona para, literalmente, ver e viver mais. Sim, há filosofia (que não se leva a sério demais) nas composições de John McCrea…

 

Como Motorcade, outro não há

Talvez Motorcade of Generosity não seja o melhor álbum da Cake. De acordo com as paradas, realmente não seria, pois Fashion the Nugget (1996), Prolonging the Magic (1998) e Comfort Eagle (2001) se saíram muito melhor. Ocorre que entre o segundo e o terceiro álbuns, Brown e Damiani deixaram a banda. O mesmo ocorreria com Roper em 2001.

 

O trajeto da banda é pontuado por paradas e recomeços, com várias mudanças na formação. Nelson retornou por um período, assim como Roper, que está até hoje na Cake. Brown, um dos pilares da formação inicial, chegou a colaborar no sexto e mais recente álbum, Showroom of Compassion (2011), mas sem voltar a integrar oficialmente o time.

 

Até Pressure Chief (2004), o quinto álbum, a Cake sempre emplacava uma faixa nas paradas alternativas nos Estados Unidos. Esse e o anterior foram lançados pela Columbia, uma major. Mas a relação com a gravadora azedou e a banda voltou ao esquema independente para o último álbum, mantendo, como sempre fez, a auto-produção.

 

Musicalmente, a Cake ampliou suas referências, incorporando instrumentos eletrônicos. Entre essas referências, estão nomes da música brasileira, especialmente Tom Zé, com quem a banda chegou a gravar uma música em uma das vezes que veio nos visitar. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1999 e a última, em 2013.

 

Apesar da trajetória da Cake ter vários pontos interessantes – inclua-se aqui a organização, entre 2002 e 2007, do Unlimited Sunshine Tours (com bandas tão diversas quanto The Flaming Lips, De La Soul, Gogol Bordello e Cheap Trick) -, é mesmo em seu início que os elementos mais característicos de sua singular sonoridade estão mais nítidos.

 

Além disso, como mostram os registros de shows de 1994, várias músicas que seriam lançadas em álbuns posteriores (e não apenas no segundo) já estavam compostas. Em seu período inicial, simplicidade, heterodoxia e criatividade se aliaram para criar um álbum que merece a devida celebração em seu trigésimo aniversário.

 

Nota: Em 2008, a banda relançou Motorcade of Generosity sob o selo que havia criado, a UpBeat Records, divulgando quatro vídeos de apresentações de 1995. Mais: assista “Jolene” ao vivo em 1994.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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