Automatic For The People, 30

 

 

Eu acho que a pós-modernidade não levou das pessoas o hábito de eleger os discos de suas vidas. Eu, nascido em 1970, não consigo – e nem quero – me desvencilhar disso, e aviso que, dentre uma lista seleta, “Automatic For The People”, oitavo álbum do REM, é um dos álbuns da minha vida. Olhando o tempo em perspectiva, já vivi mais tempo com o disco do que sem ele. Quando foi lançado, eu tinha 21 para 22 anos e mudava de faculdade, com medo do futuro por não saber se minha escolha era certa. Hoje, 30/31 anos depois, já fiz mais uma faculdade e um mestrado, com a parcial noção de que não acertamos nada completamente na vida. Ou, melhor dizendo, acertamos menos do que pensamos. Este preâmbulo viajante serve para dizer que, sim, ao longo dos anos, “Automatic For The People” me fez companhia. Eu o ouvi com amigos queridos que não vejo mais, com amigos mais queridos que voltei a ver e com gente importante que se foi no vai e vem da vida. Ao fim e ao cabo, a certeza de que, se há uma obra imortal do REM, é essa.

 

 

È engraçado olhar para o disco em seu contexto de origem. O REM vinha de seu maior sucesso comercial, “Out Of Time”, álbum que ganhou o mundo nas asas de dois hits: “Losing My Religion” e “Shiny Happy People”, duas canções pop mas opostas pelo vértice em termos de conteúdo lírico. O grupo de Athens, Geórgia, nunca pensou que poderia ser unanimidade mundial como foi naquele tempo. Michael Stipe, Peter Buck, Bill Berry e Mike Mills eram crias do undergound da década anterior, gestados na lógica do rock universitário americano, movido por noções de princípios que hoje soariam risíveis ante a lógica do mercado. Por exemplo, quando o REM assinou contrato com a Warner, em 1988, foi chamado de “vendido” e “traidor” porque deixava para trás o meio que o gerou. De fato, a banda passou a ter uma distribuição mundial, algo que a gravadora independente IRS, detentora de seu passe anteriormente, não conseguia oferecer. Mais ainda: com um contrato polpudo e liberdade criativa intacta, o REM maturou, ousou e levou sua musicalidade para um nível acima.

 

 

Isso não quer dizer que os álbuns gravados a partir de 1989, com “Green”, sejam melhores ou piores que a produção feita até então. Eles só são diferentes, porque, bem, o mundo mudou drasticamente de uma década para outra e a banda também. Michael Stipe se tornou uma figura notável em meio a tantas formações que insistiam na discrição como uma característica marcante. E ele fez isso a partir do clipe de “Losing My Religion”, veiculado até hoje e tema de programa na Netflix. De fato, a canção de “Out Of Time” é imbatível como hit popular, mas o REM já havia flertado com o pop de forma inédita com “Stand”, do disco anterior. Com “Losing” e “Shiny Happy People” (esta última, ainda que por pura ironia), o grupo ultrapassou os limites e conseguiu manter-se forte e relevante mesmo em meio à explosão do grunge, especialmente do Nirvana. Se pensamos que os clipes de “Losing My Religion” e “Smells Like Teen Spirit” conviveram nas paradas da MTV, com “Enter Sandman”, do Metallica, correndo por fora, dá pra ter uma medida da importância que ele tem.

 

 

Quando falamos de “Automatic For The People”, lançado em outubro de 1992, tudo o que escrevi até agora é/era passado. O grupo, superexposto à fama como nunca, lançou uma espécie de negativo do trabalho anterior. E tudo se torna mais interessante quando descobrimos que, durante as mesmas sessões de gravação de “Out Of Time”, o quarteto já estava registrando as primeiras versões de canções que só entrariam no novo álbum. Ouvido na época, “Automatic” era, de fato, muito diferente do anterior, mas também em relação a tudo que o grupo lançara até então. O folk rock alterntivo por excelência, marca sonora registrada do REM, ainda estava lá, mas de uma forma muito mais elaborada, rebuscada e … triste. Sim, “Automatic For The People” é um disco em preto e branco, melancólico, sobre envelhecer, sobre solidão, sobre perder quem se ama e, pior ainda, não amar ninguém. Como muitos outros álbuns no rock, é um trabalho que captura seus autores virando a casa dos 30 anos e entendendo que o mundo não é tão colorido assim.

 

 

“Automatic” envelheceu muito bem. A tal ponto que hoje presto mais atenção em suas canções obscuras que nos hits. Aliás, foram seis singles: “Drive”, “Man On The Moon”, “The Sidewinder Sleeps Tonite”, “Everybody Hurts”, “Nightswimming” e “Find The River”. Talvez minha preferida hoje seja a colossal “Sweetness Follows”, com um timbre celestial obtido pela alquimia entre um teclado e um quarteto de cellos, poucos centímetros à frente de “Star Me Kitten”, que eu teimo em pensar ser uma canção perdida dos Beach Boys achada pelo REM em algum canto do estúdio. Os timbres e ambiências são totalmente parecidos com clássicos como “Caroline No” ou “Til I Die”, um misto de tristeza alegre com alegria triste via teclados ambientes, guitarra e voz em desalinho sob o sol da manhã. Sem falar no rockão marcial que é “Ignoreland”, que traz bandolins como “Losing My Religion”, mas de um outro jeito e abordagem. E temos um outro fator, digamos, “desequilibrante”: a presença do ex-Led Zeppelin John Paul Jones à frente dos arranjos de cordas, certamente uma das marcas registradas do disco. Sua atuação em “Drive”, “The Sidewinder Sleeps Tonight”, “Everybody Hurts” e “Nightswimming” é decisiva e marcante para traduzir em som a melancolia que estas canções traziam.

 

 

A linguagem visual da capa e do encarte também apontavam o extremo oposto em relação a “Out Of Time”, cortesia de fotos tiradas pelo próprio Michael Stipe e pelo fotógrafo Anton Corbjin. O contraste dos tons de preto, branco e cinza com o verde limão que o CD exibia enfatizava as contradições e as identidades do REM em choque e reorganização. Tudo no disco é fruto de sentimento sincero sobre o tempo passando e a perplexidade que vem desta constatação. É tudo muito bonito. Como dissemos, “Automatic For The People” é um álbum que desconcerta de tão belo. Sua beleza está nas linhas tortas e, ainda assim, extremamente pop em alguns momentos, a tal ponto que deixam confusão na mente de quem ouve e quer cantar junto letras tão tristonhas em meio a melodias tão belas.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “Automatic For The People, 30

  • 9 de outubro de 2022 em 21:07
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    Esse disco me emociona profundamente. Ganhei ele da minha primeira namorada. Na época, não tinha onde rodar o cd, ela, gentilmente me deu o cd do R.E.M e, de quebra um “discman”!
    O valor está no que fica retido na memória. Sou um nostálgico convicto.
    Cada sonoridade desse disco me traz uma época, um cheiro, um gosto e um vazio.
    A arte é o que me faz resistir.
    Mais um excelente texto .
    Parabéns e sigamos!

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    • 10 de outubro de 2022 em 06:42
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      Obrigado pelo comentário, meu caro.

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  • 6 de outubro de 2022 em 19:15
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    Que coisa linda seu texto sobre este disco magnífico. Acho “Find The River” a melhor música já feita. Obrigado.

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