Disstantes é a resposta para o conservadorismo no Rio

 

 

 

Disstantes – Apocalipto
31′, 11 faixas
(Rasta Punk)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Uma sociedade conservadora como o estado do Rio de Janeiro produz um duo como o Disstantes. Como? É simples. Basta pensar na repressão que se abate sobre um estado que já foi progressista, que já teve a capital do país e que, de três décadas para cá, caiu nas mãos de um grupo político que se espalhou para todos os setores da existência, da política e da sociedade, passando pela economia. Os impulsos progressistas do velho Rio de se sua capitalidade – uma espécie de vocação vanguardista natural que a cidade do Rio tinha e que se perdeu – geram respostas a esta repressão evangélica, econômica e comportamental. Disstantes é uma manifestação de limites, um grito de “chega, porra, tem muita coisa errada!”, algo assim. E quem dá esse recado são duas figuras carimbadas da cena carioca/fluminense de música alternativa: Marco Homobono e Gilbert T. Como dupla, os caras lançaram “Apocalipto”, seu primeiro trabalho que cumpre a função de radiografar as agruras urbanas sob o ponto de vista musical e comportamental, com um resultado mais que necessário.

 

 

A divisão de tarefas entre os dois se deu da seguinte forma: Homobono, guitarrista, letrista e vocalista dos Djangos e dono de projetos autorais ótimos, elaborou as palavras e as melodias das canções do álbum, enquanto Gilber T, dos Seletores de Frequência, megamúsico de estúdio e capaz de criar envelopagens sonoras de ótimo grau, criou as molduras musicais e atmosferas das onze faixas presentes em “Apocalipto”. O encontro entre os dois se deu em meio à pandemia, resultando, a princípio, em duas composições e na escolha do nome da dupla, uma adaptação hip-hopesca do termo “distantes”, uma vez que Marco estava em Jacarepaguá, no Rio e Gilber se encontrava em Niterói, do outro lado da Ponte. Depois que o covid-19 perdeu força, os caras se encontraram e materializaram a parceria em uma semana de trabalho pesado no estúdio. No fim deste tempo, estavam com o álbum pronto e um trabalho afiadíssimo nas mãos.

 

 

E o que serve o Disstantes aqui? Um caldo de hip-hop, ragga, reggae, funk, batidão e crítica social. É como conversar com gente indignada dentro de um trem lotado, de um BRT apinhado de gente, sobre o que vai errado na vida. Tem crônica social revestindo todos os cantos do álbum, com exceções em poucos momentos específicos. Na maioria do tempo, Homobono e Gilbert T enfiam o dedo nas muitas feridas expostas do habitante das periferias urbanas brasileiras, porque, apesar de nascidos no estado do Rio, o que eles falam serve para vários outros lugares do país e do mundo. E a linguagem utilizada aqui é direta e reta, como um soco no estômago. É necessário e louvável que haja alguém disposto a pegar essas influências e mandar ver num álbum como “Apocalipto”.

 

 

Os momentos mais bacanas são o single “Mentiras (Faz Fake)”, que tem participação da vocalista Dani Vallejo, contrapondo certa doçura a versos como “seu ouvido absoluto, nosso som agride” ou “Moisés não te pediu follow, o mar se abriu e fechou nos teus cornos”. Sob o palavrório, uma base com samples, beats hip hop e tudo mais. “Vangelis”, por sua vez, se vale do nome do músico grego para cutucar a sociedade conservadora e miliciana. Já em “Saída de Emergência”, a minha preferida do álbum, temos um batidão derivado do Miami Bass que é engrupido pelo flow de Homobono e por efeitos à la Kraftwerk e menções explícitas de modernidade e de atraso, tudo no mesmo pacote. Ainda tem a ótima “Atividade 12 x 1” com um ótimo rap de Jef Rodriguez e Lil Vini enfiado no meio da melodia. Isso sem falar na abertura quase ska-funk de “Mete O Pé”, que já coloca o ouvinte em estado necessário de alerta.

 

 

“Apocalipto” não é só abrasivo, ele é um artefato consciente de lugar e condição. Basta ouvir a vinhetona “Radio Libre”, na qual os sujeitos – com a ajuda de Seu Cris – enfileiram vários programas e estações de rádio que contribuíram e contribuem ainda hoje para transmitir o que ninguém transmite. Este é um discaço, necessário e tristemente belo.

 

 

Ouça primeiro: “Mete O Pé”, “Vangelis”, “Saída de Emergência”, “Atividade 12×1”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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