O disco perfeito do Alvvays

 

 

 

Alvvays – Blue Rev
39′, 14 faixas
(Polyvinyl)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

A gente vai envelhecendo e acha que certas coisas não são mais capazes de nos emocionar. Veja, por exemplo, o novo álbum dos canadenses Alvvays, “Blue Rev”: é uma coleção de pequenos sonhos em forma de música. A paisagem sonora aqui é composta por pinceladas de dreampop, esguichos de shoegaze, gotinhas de rock alternativo britânico (no sentido Lush ou Sundays do termo) e muito de charme próprio e intransferível. Sim, porque estará errado quem pensar que “Blue Rev” é só um – ótimo – exercício de estilo no qual a recriação desta sonoridade agridoce de guitarras furiosas sobre melodias doces cantadas por vocais femininos é o grande objetivo. Alvvays adapta a estética para 2022 e a reveste com consciência e preocupação, levando para longe a aura ingênua que esta sonoridade ostenta de forma quase indissociável. Sendo assim, em meio a melodias próximas da perfeição envolta por arranjos sensacionais, o ouvinte se vê num diário de impressões e preocupações sérias, típicas de quem está adquirindo quilometragem nesta pista escorregadia chamada pós-modernidade.

 

 

O grande charme que o Alvvays tem é de que soar terrivelmente pop o tempo todo. Não há uma só canção entre as 14 presentes em “Blue Rev” que não seja cantável ou acompanhável mentalmente. É um álbum perfeito para ouvir enquanto se trabalha ou viaja pela cidade, é como um bom livro que deixamos à mão para ser lido em partes, em curtos momentos ou, claro, integralmente quando temos mais tempo. Seu glossário de temas – amor, maturidade, solidão e perplexidade ante a loucura do mundo – é universal e acessível, justamente porque Molly Rankin, vocalista e guitarrista do grupo, tem a manha de captar com sinceridade cortante seus demônios internos e colocá-los à disposição do escrutínio alheio, numa relação simbiótica e indissociável. O grande trunfo dos canadenses, além do talento sonoro, é esta sinceridade pós-adolescente cortante. E isso ainda funciona, sobretudo num mundo tão photoshopado como o nosso.

 

 

Não há perda de tempo em “Blue Rev”, tudo é próximo da perfeição. Das 14 faixas presentes, oito têm menos de que três minutos, o que explica a fluidez total das paisagens musicais. E, dentre a totalidade do álbum, metade delas são absolutamente perfeitinhas. De cara, a abertura com “Pharmacist” consegue condensar todo o sonho portátil das sonoridades C86 e twee-pop em dois minutos e quatro segundos de história de amor, camadas e mais camadas de guitarras e uma cozinha soterrada por teclados e tempestade de distorção. Para quem amava esse tipo de som lá nos anos 1990, é quase irresistível. E isso é só o cartão de visitas. “Belinda Says” já é mais lenta, porém é mais densa e encorpada, com outro conto de filme americano juvenil sobre solidão e fim de romance, com destaque para a simbiose entre as guitarras sobrepostas e os teclados que compõem a argamassa harmônica.

 

 

Em “Tom Verlaine”, canção que homenageia o vocalista e guitarrista do Television, o Alvvays leva sua pagada para o pós-punk oitentista como se fosse algo pouco mais elaborado que uma demo, porém, com imperfeições belas e discretas, que são contrabalançadas pelos ótimos vocais de Molly. Já “Very Online Guy” é uma pop song oitentista disfarçada. Tem bateria eletrônica, efeitinhos eletrônicos e uma progressão de acordes irresistivelmente próxima de um tecnopop qualquer daquele tempo. Em “Tile By Tile”, o Alvvays baixa o tom e entrega uma balada indie clássica, novamente com vocais maravilhosos e um arranjo contemplativo de chuva caindo na janela. “Pomeranian Spinster” tem um pouco de Bangles, um pouco de grupos de pop punk noventistas, tudo misturado em boas dosagens e proporções, enquanto “Bored In Bristol” tem um andamento próximo de “You Are The One”, hit de 1988 do A-Ha, mas com instrumental de demo tape intencional.

 

 

“Blue Rev” é um disco indicadíssimo para este mundo cruel, não pela sua suposta ingenuidade, mas por ser um álbum que consegue pegar o melhor de um passado que se foi e trazê-lo para hoje, com propriedade e verdade. A banda estará no Balaclava Festival, em dezembro, um privilégio para quem vai vê-la ao vivo. Um dos discos de 2022.

 

 

Ouça primeiro: “Bored In Bristol”, “Tom Verlaine”, “Tile By Tile”, “Pharmacist”, “Very Online Guy”, Belinda Says”, “Pomeranian Spinster”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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