Algumas canções têm vida e vontade próprias
Estava eu na filial de Santa Rosa do Supermercado Mundial. Gosto de ir lá na parte da manhã e durante a semana, quando possível, justo para poder trafegar com calma pelos corredores. Sou aquele tipo de consumidor que gosta de ver se há novidades nas prateleiras, aproveitar alguma promoção, coisas assim. Gosto de ir ao mercado. E, como um ser que se sente à vontade num ambiente como este, passo um tempo com mais, digamos, qualidade, do que alguém que só foi até lá por conta de alguma obrigação e a contragosto. Sendo assim, presto atenção em detalhes que, provavelmente, passariam batidos por essa gente mais apressada. Por exemplo, a música que toca neste mercado é originária de alguma playlist pré-programada de modo a parecer uma emissora de FM. Entre as canções, o locutor manda ver em promoções de azeite, frutos do mar, picanha maturada, cerveja….É provável que você já tenha estado num lugar assim. Essa introdução é para dizer que hoje ouvi “Runaway Train”, do Soul Asylum e “Losing My Religion”, do REM, nesta “emissora” de rádio interna. E fiquei refletindo.
Na verdade, minhas reflexões sobre sentidos e apropriações de canções pop é comum e constante. Faço sem perceber e, geralmente fico indignado. Outro dia resenhei o álbum do grupo bielorusso Molchat Doma, que começou a fazer sucesso fora de seu país por conta de uma canção que foi viralizada no TikTok. A letra era sobre a história real de um jovem poeta russo que se matou aos 26 anos mas isso não serviu para que “Sudno”, a faixa em questão, fosse restrita a situações mais, digamos, sérias ou tristes. Pelo contrário. Ela surgiu sonorizando passeios com cachorros, escolhas de roupas para uma festa e até um vídeo de uma estudante americana que mostrava como tingir os pelos da axila de azul. Os integrantes do grupo disseram em entrevista que se incomodaram inicialmente com isso mas que, diante do sucesso que estavam experimentando, deixaram de lado rapidamente. Digo isso porque “Runaway Train”, canção do Soul Asylum, e “Losing My Religion”, do REM, são, ainda que tenham feito muito sucesso a partir de 1992 e 1991, respectivamente, quando foram lançadas, obras “tristes”.
A primeira, composta pelo vocalista e guitarrista David Pirner, fala sobre depressão no ponto de vista pessoal. “Runaway Train” é um jeito do americano falar “trem descontrolado”, ou seja, algo que está a caminho de, provavelmente, se espatifar em algum ponto da ferrovia. Como se não bastasse, o clipe da canção, veiculado com força nas MTVs do mundo inteiro a partir de 1993, mostrava uma série de fotos reais de crianças desaparecidas nos Estados Unidos. Ou seja, era, na mais otimista das hipóteses, uma obra sobre a imprevisibilidade das coisas, a vulnerabilidade das pessoas e como tudo pode estar por acabar da pior maneira, sem que possamos fazer quase nada. Mesmo assim – e isso não é novidade na música pop, sabemos bem – “Runaway Train” foi o primeiro sucesso mundial da banda de Minessota, que foi alçada a uma nova prateleira por conta disso, chegando, inclusive, a tocar na cerimônia de posse do presidente Bill Clinton em 1995. A canção e o disco na qual estava inserida, “Grave Dancers Union”, fizeram com que o Soul Asylum entrasse naquela rotina de fazer shows em países diferentes, para públicos diferentes e que, não necessariamente, seriam capazes de compreender as letras de suas canções em inglês. Daí para cair no grande redemoinho da ressignificação, foi um pulo.
Neste lugar, o grande redemoinho da ressignificação, habitam várias canções e seus novos públicos. Por exemplo, os noivos que acham por bem colocar “One”, do U2 ou “Every Breath You Take”, do The Police, como canções para abrilhantar suas cerimônias de casamento. Ou os casais apaixonados que resolvem dedicar “Luka”, da cantora americana Suzanne Vega, originalmente escrita em 1987, sobre violência doméstica. Ou “Sexed Up”, do inglês Robbie Williams, que é um baita esculacho machistoide numa namorada indesejada que só é mantida no posto porque é gostosona. Também estão lá os arquitetos da destruição da banda Sambô, que acharam por bem fazer uma versão pagodeira sunshine de “Sunday Bloody Sunday”, faixa de 1983 do U2, que fala sobre um massacre de manifestantes irlandeses do norte pelas mãos de soldados britânicos. A gente releva, acho. Afinal de contas, num país como o Brasil, tão desigual e estranho, exigir fluência em inglês por parte das pessoas, é maldade, mesmo que a maioria dessa gente tenha frequentado – ou tenha condições de frequentar – cursos de idiomas em algum momento da vida.
Foi com esse pensamento que dei boas vindas a “Losing My Religion” a este singelo grupo de canções desvirtuadas. A faixa é, até hoje, o maior sucesso da carreira do REM, presente em seu álbum de 1991, “Out Of Time”. Seu clipe talvez tenha sido o mais rodado da história da MTV e, ainda que seja bem bonito, de bom gosto e artístico, realmente encheu o saco das pessoas ainda nos anos 1990. Tudo bem, “Losing” foi um sucesso global desde sempre, tem singelos um bilhão e quatrocentos milhões de streamings apenas no Spotify, o que prova que ela atravessou o período de sua origem e sobreviveu ao tempo. Ninguém se importa, talvez nem o autor, Michael Stipe, se sua letra fala sobre vários questionamentos existenciais que fazem o narrador perder sua paciência, seu prumo, numa tradução livre do título. Desde o início todo mundo entoou feliz a cantilena de Stipe. Quando o grupo dele veio ao Brasil pela primeira vez, em 2001, para o Rock In Rio III, a canção era uma das mais esperadas. Dessa forma, não faz tanta diferença se ela estava na programação da playlist do Mundial de Santa Rosa desta semana. Mas há outro caso sobre o qual quero falar.
Por falar em Rock In Rio, estamos em pleno curso de mais uma edição do festival. Talvez você tenha estranhado a ausência dele das manchetes aqui do site e, provavelmente, faremos um texto ao fim das atrações explicando o porquê. Quem sabe? O fato é que, entre as atrações desta versão 2024, que celebra os quarenta anos do evento Rock In Rio, está o grupo americano Journey. Ainda que tenha feito bastante sucesso entre o fim dos anos 1970 e 1980, é de se estranhar que uma formação, digamos, secundária, em termos de importância no rock do período, ou mesmo do rock farofa do período, ainda esteja na ativa e cacifada para tocar por aqui, mas é totalmente explicável. O Journey é uma dessas bandas que têm uma canção que não é mais sua: “Don’t Stop Believin”. Gravada em 1981 e incluída em seu sétimo álbum, “Escape”, “Don’t…” já era hit mundial em seu tempo, inclusive por aqui. Chegou a fazer parte da célebre compilação “Hollywood Ao Sucesso”, álbum que trazia uma série de canções utilizadas por comerciais esportivos do cigarro Hollywood, sonorizando jovens saudáveis que faziam atividades físicas radicais como se o cilindro de nicotina e alcatrão fosse o principal motivo disso. Além dela, “Breaking All The Rules”, de Peter Frampton; “Only Time Will Tell”, do Asia; “While You See A Chance”, de Steve Winwood, eram algumas dessas faixas.
Talvez o período 1981-1986 seja o mais bem sucedido do Journey fora dos Estados Unidos, com “Don’t Stop Believin” puxando a fila de singles mais vitoriosos do grupo, seguida por “Separate Ways”, do álbum seguinte, “Frontiers”, de 1983. Por conta de vários problemas internos, o vocalista Steve Perry deixou a banda na década seguinte, o que levou os membros remanescentes a encontrarem outros vocalistas que fossem capazes de imitar o mesmo registro de Perry, com vistas a manter abertas as chances de um novo sucesso nos mesmos moldes de power ballad usados nos hits. Mas, independente do que o Journey fazia, com ou sem Perry, a canção começou a ser utilizada em filmes e séries. Primeiro foi o longa “Monster”, com Charlize Theron, de 2003. Em 2007, o último episódio de The Sopranos executou a canção na íntegra, com um destaque impressionante, especialmente para uma série que tinha muito cuidado com sua parte musical. Mais tarde, a série “Glee”, que se caracterizou por apresentar versões de vários sucessos pop de diversos momentos, incluiu uma releitura para “Don’t Stop Believin”, que fez um sucesso monstruoso, ultrapassando o milhão de downloads pagos, em 2009.
Com isso, devidamente apresentada a um novo-novíssimo público, a canção de 1981, já tinha quase tinta anos quando desatou a fazer mais sucesso, num mundo muito mais midiático e imediatista do que antes. Entrou para setlists e várias bandas cover e de baile/bar, passou a ser tocada em finais esportivas das conferências americanas de basquete, hóquei, baseball, futebol, além de festas de formatura, bailes de debutantes e o que mais viesse. Rompeu, assim como “We Are The Champions”, originalmente do Queen, o limite de seu criador, passando a ser uma canção de apropriação inconsciente. Se o tema da criação da banda inglesa é o triunfo absoluto sobre os “perdedores”, numa letra que eu acho temerária em alguns momentos, “Don’t Stop” fala de … resiliência. Originalmente, as palavras falam de um casal de jovens que se encontra na noite, vindos de lugares diferentes. O destino os leva ao mesmo lugar e, lá, em meio a bebedeiras e azarações, eles descobrem que, se não deixarem de acreditar em si mesmos, tudo dará errado. Em tempos de sistema neoliberal opressor e massivo, nada como alimentar a esse mesmo sistema consumindo uma obra que nos incentiva a persistir dentro das regras oferecidas. Ou seja, se ferre, mas levante. Sofra, mas persista. Não questione o que te fez cair, se ferrar ou sofrer. Apenas siga até conseguir. Os coaches adoram.
Não sei se é o caso de atirar “Don’t Stop Believin” no grande redemoinho da ressignificação, uma vez que seu sentido original foi, digamos, amplificado, e não modificado ou mal entendido. Antes dela, há lugar, por exemplo, para a produção do programa “Na Brasa”, do chef Felipe Bronze, que costumava utilizar faixas como “Vicious” (Lou Reed), “Someday” (Strokes) e sucessos de Motorhead, Rolling Stones e Led Zeppelin para sonorizar takes de carnes, legumes e quetais em grelhas incandescentes. Mas é curioso ver esse comportamento massivo e coletivo de pessoas consumindo uma obra de arte a partir de ressignificações e reinterpretações feitas sem que elas mesmas percebam. O que a façam. Por essas e outras que o pop e o rock são tão interessantes e controversos.
PS: será que “Don’t Stop Believin'” estará em versões futuras da playlist do Mundial de Santa Rosa? A conferir.
PPS: esqueci de mencionar que “Don’t Stop Believin” conta com inacreditáveis dois bilhões e quatrocentos milhões de streamings, apenas no Spotify. Ela tem mais de três vezes o número de “We Are The Champions”, que está com meros setecentos e quarenta e três milhões de streamings.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.