Manu Chao e a liberdade a altos custos

 

 

 

Manu Chao – Tu Te Vas
38′, 13 faixas
(Radio Bemba)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Pode não parecer, mas Manu Chao é uma das figuras mais enigmáticas da música pop mundial. Sua figura colorida, brandindo um violão, cantando em espanhol, francês ou até português, letras sobre a vida entre os países, as cidades, os povos, é fruto de uma construção pessoal e inevitável, forjada diante de várias necessidades que o grande público nem imagina. Depois de dezessete anos sem lançar um álbum, o cantor e compositor francês está de volta com este bom “Tu Te Vas”, que traz mais um compêndio dessas canções acústicas levemente povoadas com blips e tóins eletrônicos discretíssemos, algum baixo e percussão e nada mais. Este formato, ainda que simples e acessível, foi descoberto por Manu em 1998 e talvez ele jamais tenha imaginado que faria tanto sucesso com sua canção mais conhecida: “Clandestino”, que deu título ao primeiro álbum solo, lançado naquele ano. É bom lembrar que, antes disso, Jose-Manuel Thomas Arthur Chao, nascido em Paris, em 1961, era o líder da furiosa banda punk Mano Negra, famosa por seus discos panculturais e intensos. Após o fim dela, Chao amargou anos de depressão até se reinventar como este trovador andarilho de “Clandestino”, imagem que perdura até hoje. E, como os tempos atuais são ainda mais intensos e rápidos que em 2007, tal figura é ainda mais desafiadora.

 

Manu era e permaneceu um partidário da força popular como meio de aferição de valores e necessidades. Avesso a multinacionais, luxos e benesses – e sendo contraditório em alguns momentos – ele vive em movimento. Ainda que tenha uma residência fixa em Barcelona, Espanha, ele passa a maior parte do tempo em trânsito, o que nos leva à certeza de que “Clandestino” é, mais que tudo, uma canção autobiográfica. Mas, como o tempo voa, já se vão 26 anos desde o lançamento da faixa. Em “Viva Tu”, gravado e lançado de forma absolutamente cooperativa e independente, Manu Chao ainda é este sujeito sem paradeiro fixo, que se vale dessa dinâmica para não ter que fazer concessões demasiadas ao sistema. Em época de ultracapitalismo neoliberal, uma figura como ele é mais que essencial. E o fato de seu trabalho parecer uma sequência lógica e estética dos outros álbuns, calcado neste modelo simples de canção que mencionamos acima, é uma forma clara de mandar o sistema às favas e seguir fazendo o que gosta e acredita. Poderia ser ingênuo se usássemos isso em relação a qualquer outro artista, mas Manu Chao é a exceção que confirma a regra.

 

As treze faixas de “Viva Tu” seguem esse modelo e não oferecem qualquer tipo de surpresa ou concessão a outras formas. É, digamos, um dos grandes charmes de Manu como artista. Em alguns momentos pode soar repetitivo, mas em outros, é quase grande arte. Por exemplo, o single “Tu Te Vas” tem um groove discretíssimo em meio ao ambiente eletroacústico, que revela um bom uso do baixo e do arranjo. A participação da cantora francesa Laeti é decisiva para dar um molho extra ao prato. Em “River Why”, cantada em inglês, Manu se vale da repetição rítmica e vocal para fixar a mensagem e usa elementos adjacentes ao reggae, algo que ele já fazia quando era vocalista da Mano Negra e que permaneceu fazendo solo. O resultado é ótimo, muito pela produção fluida do próprio Manu, certamente a pessoa mais indicada para perceber essas nuances e fazê-las jogar a favor do disco.

 

Manu tem um filho brasileiro e nosso país ocupa um espaço afetuoso importante na inspiração do sujeito. Ele vem aqui com certa frequência e lança sempre algumas faixas cantadas em português. Neste “Viva Tu”, temos “Coração No Mar” e a interessante “São Paulo Motoboy”, que mostra o quanto Manu é capaz de perceber as dinâmicas peculiares dos lugares onde está. É em espanhol, no entanto, que sua poesia parece fluir melhor. Há uma ótima concessão à dinâmica flamenca na adorável “La Collila”, que chega a lembrar um pouco do som de violões do Gipsy Kings, enquanto “Tom et Lola”, com letra em francês, usa de acordeão e informações reggae em tom acelerado para fazer uma canção, digamos, sacana, algo que Manu não costuma fazer, mas que deve soar como o amor livre contra as amarras sociais e morais. Faz sentido e funciona. Aliás, os álbuns de Manu Chao criam pequenos habitats sonoros em que essas coisas acontecem e cabem.

 

“Tu Te Vas” não vai inventar a roda ou descobrir o fogo, mas pode servir para apresentar esse artista ímpar a um número cada vez maior de pessoas que acreditam ser possível driblar a grana, a burrice e as contingências em busca de liberdade. E chegar lá, mesmo que a alto custo pessoal. Que seja.

 

 

Ouça primeiro: “River Why”, “Tu Te Vas”, “La Colilla”, “Tom et Lola”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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