A modernidade dançante e trintona

 

O tempo, sempre ele. A gente estuda na Faculdade de História sobre como a percepção da passagem dos dias, meses, anos, pode influenciar em absolutamente tudo. Desde como percebemos a nós mesmos, nas nossas relações diárias, nos afazeres do cotidiano e, em nós, enquanto civilização, espécie, seres sencientes. No caso da produção de cultura e,em especial, das artes, o tempo é marca indissociável, o que significa dizer que, pela produção artística de uma época, um lugar, é possível dizer muito sobre o que faziam e como viviam as pessoas responsáveis por sua existência. Se a gente aplicar essa noção à música pop planetária, veremos muitos momentos de corte, renovação e reinvenção,afinal, é deles que a arte se alimenta. É assim ou voltamos para a Idade das Trevas, na qual a certeza do apocalipse católico norteava a ideia de futuro, obrigando as pessoas a viverem num eterno presente.

 

Sendo assim, com a liberdade de ir e vir no tempo e exercitando o juízo de valores obtido às custas de muitas audições, pesquisas e estudos, dá pra cravar que uma modernidade pop, negra e dançante se ergueu na virada dos anos 1980/1990. E que, depois disso, provavelmente, não tivemos um salto tão grande e importante na evolução da música popular. O que estava em jogo naquela mudança de décadas era, não só a queda dos regimes socialistas de governo, mas a inserção de uma quantidade imensa de pessoas no mercado consumidor/produtor de arte. Gente que trazia informações herdadas de antepassados, lutas, vivências, experiências que não estavam no mapa até então. E podemos dizer que, de acordo com os dados estatísticos disponíveis, essas pessoas pertenciam a minorias étnicas, ideológicas e comportamentais. Sendo assim, a cultura da dança, do hip hop, das influências caribenhas, da música eletrônica, de várias linguagens e informações foi incorporada aos poucos na música pop do mundo.

 

Os primeiros gritos já vieram no início dos anos 1980, através do hip hop. E foram ampliados com a house music, já em meados da década. A partir dela, a inserção debatidas eletrônicas e informações diversas foram afetando definitivamente a produção mesmo de hits nas paradas de sucesso. Abriu-se espaço para uma dance music extremamente interessante, agregadora, politizada e feroz. Nem o rock foi poupado, gerando uma turma de bandas e artistas importantes, como o Stone Roses, o Soup Dragons, o Inspiral Carpets, o Blur e outras bandas inglesas do fim da década de 1980, que pegaram para sio rótulo de “acid rock”. E, além deles todos, os três pais eletrônicos daquele tempo, New Order, Depeche Mode e os Pet Shop Boys. Era o abraço à música eletrônica, inserida no contexto de diversas formas, assumindo o protagonismo na confecção e viabilidade das próprias canções.

 

Mas esse pessoal não era responsável pela verdadeira tempestade que já se formara. Os negros, em seus soundsystems, coletivos e grupos pelas periferias da Inglaterra, seriamos grandes arquitetos dessa música. A mistura de influências, o tempo vivenciado em casa, ouvindo discos diversos, a adolescência em cidades marcadas por conflitos raciais e pela política desumana de margaret thatcher, tudo contribuiu para o surgimento de gente engajada e talentosa.

 

Selecionei seis canções que estão na casa dos 30 anos de idade (um pouco mais, um pouco menos), para ilustrar como esta música era revolucionária e impressionante. Na minha mente que distorce o tempo, elas ainda são muito modernas e terrivelmente subversivas. Podemos dizer que essas novas formas eram o hip hop alternativo, o trip hop, a dance music que propulsionava as raves. E elas eram o futuro que havia chegado.

 

 

– MARRS – Pump Up The Volume (1987)

Talvez o grande ponto de partida para a fusão de informações dancantes, oriundas da cultura do sampler e do hip hop, devidamente inseridas na lógica das pistas de dança daquele fim de década. Esta canção já era muito avançada para as paradas de sucesso, ainda que tenha feito bastante gente pular por aí. Ao longo da faixa você pode ouvir Kool And The Gang, James Brown e mais um monte de gente.

 

 

– Paid in Full – Eric B And Rakin (Coldcut Remix) (1987)

A dupla de hip hop americana lançou um dos álbuns mais bacanas do estilo nos anos 1980, mas o que chamou a atenção em termos de modernidade galopante foi este remix feito pelos produtores ingleses do Coldcut, que levou a canção para um outro lado da Lua em termos de invenção. Há samples enlouquecidos, que vão de falas, discursos e até a cantora israelense Ofra Haza. Não por acaso, a faixa foi batizada de “Seven Minutes Of Madness”. Épico.

 

 

– Bomb The Bass – Beat Dis (1988)

Tim Simenon era o produtor britânico que estava por trás do nome Bomb The Bass. Filho de malaios e escoceses, nascido em Brixton – lugar barra pesada no entorno de Londres – ele se apropriou de influências que iam de Ennio Morricone a Public Enemy e as levou para o proverbial outro patamar.

 

 

– Neneh Cherry – Buffalo Stance (1989)

A filha do trompetista Don Cherry estreava em disco com “Raw Like Sushi”, que trazia esta maravilha. Feita por ela em parceria com Cameron McVey, produtor e parceiro criativo na época, “Buffalo Stance” é uma cascata de batidas dançantes e samples sensacionais, que influenciaram muita gente ao redor do mundo, inclusive nossa Fernanda Abreu, que lançou seu primeiro álbum. “SLA Radical Dance Disco Club” pouco tempo depois e incorporou muito do approach de Neneh, inclusive sampleando-a. Na gravação de “Buffalo Stance” estão presentes vários nomes interessantes da cena musical da época, especialmente o produtor Nellee Hooper, que trabalharia com várias pessoas na década seguinte e metade do Massive Attack da época, 3D e Mushroom.

 

 

– Soul II Soul – Get A Life (1990)

Das mentes pensantes e dançantes de Jazzy B e Nellee Hooper nasceu o Soul II Soul, que surgiu em disco no ano de 1988. Mas seu momento de maior apuro dançante e sintonia com a modernidade estava no segudo álbum, “A New Decade”, especialmente nesta faixa, que apresenta uma batida criativa, nova e que influenciou toneladas de registros que vieram depois. E mantem as cordas e acenos à música negra radiofônica dos anos 1970. Uma beleza atemporal.

 

 

– Massive Attack – Unfinished Sympathy (1991)

O grande colosso do primeiro álbum da coletividade de Bristol, “Blue Lines”. Este talvez seja o disco mais importante deste momento no tempo, o único que conseguiu, de forma absolutamente harmônica e natural, fazer a ponte entre as décadas de 1970, 1980 e 1990 – antes dela começar direito – e arremessar a música negra para uma nova realidade. Tudo está aqui, sem tirar nem por. Um clássico para ser levado para outros planetas.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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