A cura para a dor, segundo o Morphine
Cure For Pain é o segundo álbum da Morphine, lançado em setembro de 1993. Suas treze faixas mostram uma banda singular. Vamos aproveitar seu trigésimo aniversário para viajar pelo seu mundo. Nunca será tarde para adentrar nele.
O álbum tem início com uma quase vinheta. “Dawna” é composta apenas por delicados acordes de saxofone sobre uma base ambiente de teclado. Menos de um minuto depois, “Buena” quebra o breve silêncio.
O som do baixo vem serpenteando por nossos ouvidos. Tocado de um jeito que ao mesmo tempo lembra e dispensa a guitarra. A bateria logo faz companhia, uma batida leve. A voz entra aveludada, combinação perfeita para os acordes que continuam a serpentear. Quando a voz nos diz para chegar mais perto, a bateria se agita.
Vem o refrão, introduzindo o outro instrumento que colabora para música. De novo, o saxofone, mas agora com uma intensidade que faz o som explodir. A bateria torna-se enérgica, o baixo ganha distorção, enquanto a voz conta de seu encontro com um demônio, a quem nos quer apresentar.
A segunda parte de “Buena” basicamente repete a primeira. Mas agora já sabemos que a calmaria vai se tornar uma euforia. Temos que dar razão à voz: sim, depois de conhecer esse demônio já não conseguimos mais ser as mesmas pessoas.
A segunda das faixas de Cure For Pain é o bastante para nos apresentar, já arrebatados, ou no mínimo intrigados, o som do trio formado por Mark Sandman, Dana Colley e Billy Conway. O som da Morphine não tem guitarras, mas é indiscutivelmente rock. Saber que essa banda despontou no momento em que as guitarras estavam em alta (grunge, britpop, etc.) só aumenta o enigma que ela coloca.
Como se isso não bastasse, vamos descobrir que o baixo tocado por Sandman deslizando um slide só tem duas cordas e que Colley usa um sax pouco comum (o barítono, maior e mais grave que o tenor, que ele também toca). Não acabou: às vez Sandman recorre a um instrumento que batizou de tritar, com uma corda de baixo e duas de guitarra.
É difícil “explicar” como o som da Morphine surgiu. Ironicamente, sua originalidade desponta de uma exploração de gêneros anteriores ao rock, como o blues e o jazz, em histórias que mergulham nos anos 80. Colley participou de uma banda, a Three Colors, que gravou apenas um LP (This is Norwood, 1987) e alguns singles, sem rastros nas plataformas de áudio. Já Sandman e Conway estiveram juntos na Treat Her Right, que lançou três álbuns, incluindo Tied to Tracks (1989), pela RCA.
A Treat Her Right tinha algumas coisas fora do esquadro: sem um baixo na formação, Sandman ficava responsável por uma “low guitar”; Conway tocava em pé, diante de uma bateria “desconstruída”. O saxofonista Colley passou a atuar como “técnico de guitarra” e era eventualmente convidado para participar em apresentações da banda, demonstrando influências de Rahsaan Roland Kirk, Steve Berlin e James Chance.
Mesmo sendo basicamente uma banda de blues, o estilo da Treat Her Right às vezes pendia para algo mais abrasivo, o que remete a outra banda estadunidense que vai adotar mais explicitamente o punk blues como gênero, a Jon Spencer Blues Explosion.
Para chegarmos a Morphine, devemos mencionar ainda outros dois nomes. Eles fazem parte de uma banda do início dos anos 80, a Sex-Execs. O baixista Paul Kolderie optará pelo trabalho de produção, estando (com Sean Slade) entre os fundadores do Fort Apache Studios, em Boston. Jerome Deupree, baterista da Sex-Execs e fã da Treat Her Right, se juntará a Sandman e Colley para formar a Morphine por volta de 1989, como conta o documentário Journey of Dreams.
A história da banda está bastante ligada à cena musical de Boston, que era nada menos do que efervescente desde meados dos anos 80. Graças a estúdios como o Fort Apache e a clubes como o Middle East, muitas bandas puderam se formar e ganhar projeção. A lista inclui: Pixies, Buffalo Tom, Breeders, Throwing Muses, Belly, Dinosaur Jr., Sebadoh e The Lemonheads.
Outro fato que atesta a vitalidade dessa cena é que Sandman, Colley e Conway formaram ou contribuíram, paralelamente à Morphine, para muitos outros projetos musicais. Vale mencionar: Hypnosonics, banda de festa com metais multiplicados; Treat Her Orange, que se voltava para o bluegrass; e Supergroup, com a participação de Chris Ballew (The Presidents of the United States of America), com suas afinações incomuns de guitarras.
Em 1992, a Morphine, que de início era apenas mais um dentre vários projetos de seus integrantes, lançou sua estreia, Good, pelo selo local Accurate Distortion. O trabalhou chamou a atenção da Rykodisc, com a qual a banda assinou para gravar e divulgar o segundo álbum. No mesmo ano de 1993, a Rykodisc relançou Good.
Em Cure For Pain, o estilo desenvolvido em “Buena” rende outras faixas. Em estrutura semelhante, temos “I’m Free Now”, “All Wrong” e “A Head with Wings”. Há as ainda mais serenas, como “Candy” e “Cure For Pain”. “Mary Won’t You Call My Name?” acelera o andamento. Em “Sheila”, a tensão é maior, atingindo o máximo em “Thursday”, umas das músicas mais nervosas da banda.
O clima anunciado em “Dawna” aponta para o lado mais calmo do álbum. Os teclados voltam a aparecer em “Let’s Take a Trip Together”, mas sob o domínio do trio de instrumentos que passeia por um cool jazz. A delicada “In Spite of Me” destoa do restante pela presença marcante do bandolim. E “Miles Davis’ Funeral”, composta no dia da morte da lenda do jazz, é uma faixa instrumental executada apenas por cordas e gongos.
A divisão em dois lados sinaliza também para o processo de registro das faixas. As primeiras, de “Buena” a “Thursday”, foram gravadas no Fort Apache, com a produção de Kolderie, no final de 1992; as demais foram gravadas, em diversas datas, no Hi’n‘Dry, o estúdio caseiro de Sandman, que se encarregou da produção.
Durante os breves dias de trabalho no Fort Apache, Deupree foi substituído, na faixa que dá título ao álbum, por Conway, que também adicionou alguns efeitos em “Thursday”. O baterista original enfrentava dores nas articulações e também algumas reservas da parte de Sandman. Apesar de Deupree ser o músico principal na percussão, a foto no encarte traz Conway ao lado dos outros dois. O trio da foto é que fez a promoção do álbum, em shows e (apenas dois) vídeos.
A banda conquistou alguma popularidade pela inclusão de músicas de Cure For Pain em filmes e produção televisivas. As faixas “Sheila”, “In Spite of Me” e outras foram destaque na trilha sonora do filme independente de 1994 Spanking the Monkey. O vídeo de “Thursday” foi comentado em um episódio de Beavis and Butt-head e a faixa “Buena” aparece na primeira temporada de The Sopranos.
“Mile High”, música gravada na época das sessões de Cure For Pain, foi incluída na trilha sonora de outro filme, o deliciosamente intitulado Things To Do In Denver When You’re Dead (1995). O videoclipe dessa música rodava no programa Lado B, apresentado por Fábio Massari, por meio do qual conheci a banda, embora o álbum já estivesse disponível desde 1994 via Natasha Records.
Mas há uma relação mais direta com o Brasil na biografia de Mark Sandman. No começo dos anos 80, Sandman, quando já beirava os 30 anos, mochilou pela América Latina e morou no Rio de Janeiro. Reza a lenda que trabalhou na construção civil, acrescentando novas experiências a um currículo que já contava com as profissões de taxista e pescador.
Como mostra o documentário Cure For Pain, os pais de Mark relatam que ele voltou para os Estados Unidos após ter ficado doente no Brasil. Algum tempo depois, ocorre a morte de seu irmão, de quem ele ficara próximo. Esse irmão tocava saxofone e talvez isso tenha desempenhado algum papel no estilo assumido pela Morphine.
De todo modo, Sandman, que escrevia as letras das músicas, colocava nelas sua sensibilidade (de) viajante, temperada pela admiração pela prosa e poesia beatniks. Essa admiração renderia a participação em uma coletânea musical de 1997 em homenagem a Jack Kerouac. Outra característica recorrente das letras de Sandman é a atração pelas mulheres, várias músicas tendo em seus títulos o nome delas.
Nas faixas de Cure For Pain, os temas são basicamente dois. De um lado, as oscilações de alguém que se deleita com os poderes das asas e que confessa inseguranças e vícios (“I’m Free Now”, “A Head with Wings”, “Cure for Pain”). De outro lado, relacionamentos, com suas promessas, incertezas e ciúmes (“All Wrong”, “Candy”, “In Spite of Me”), inclusive quando a situação é com um gato (“Sheila”).
Há algo de bluseiramente engraçado em “Mary Won’t You Call My Name?” e “Thursday”. Nesta, a aventura com uma mulher casada é contada com elementos que passam tanto pela celebração quanto pelo arrependimento. A história culmina com uma fuga, a melhor saída para enfrentar um “marido violento e ciumento”.
A Morphine gravaria ainda mais três álbuns, o último deles, The Night, lançado em 2000, cerca de sete meses depois da morte de Sandman. Ele sofreu um ataque cardíaco no meio de um show na Itália. Um fim cruel para quem chegou a cantar que tinha todo o tempo do mundo.
Nesses álbuns, a Morphine não traz grandes novidades, insistindo em seu estilo único e inimitável, em que se destacam os saxofones de Cooley. Em Yes e Like Swimming, Sandman experimenta alguns efeitos vocais. Faixas de The Night, quando Deupree volta à banda tocando uma segunda bateria ao lado de Conway, retomam as sonoridades noturnas que já haviam aparecido em Good.
Nesse trajeto, Cure For Pain disputa com outras obras a preferência dos fãs. Como vantagem há o título icônico, que dialoga diretamente com o nome da banda. Mas Sandman rebatia que a inspiração vinha de Morfeu. De acordo com a mitologia grega, Morfeu era um dos filhos ou irmão de Hipnos, o deus do sono, e representava a personificação dos sonhos.
Outra coisa indiscutível é que se trata de um marco na ascensão da banda. O ano seguinte ao lançamento de Cure For Pain mostra a Morphine se apresentando não só pelos Estados Unidos, mas também em vários lugares da Europa, Austrália, Nova Zelândia e Japão.
No mesmo ano de 1994, a banda participou de festivais na Europa, incluindo o Pinkpop, na Holanda, em maio, e Reading, na Inglaterra, em agosto. Em 1995, já divulgando Yes, a Morphine estaria em Glastonbury e Roskilde, mas também no famoso festival de jazz de Montreux.
Apesar das perambulações, o trio nunca deixou de ter sua base em Boston, voltando a se apresentar nos clubes por onde começaram a experimentar os sons que virariam as músicas de vários álbuns. A rotina de shows nunca foi intensa, quando comparada a outras bandas que se projetaram na mesma época. E não há dúvidas de que a Morphine era melhor apreciada em um teatro do que em uma arena.
Em suma, os sons da Morphine nos transportam para outro mundo – um universo onírico, para combinar com nome da banda. Nesse mundo, não sentimos falta de guitarras. Nesse mundo, basta um baixo de duas cordas, uma bateria e um saxofone para se fazer rock de uma maneira simplesmente genial.
Nota: a versão de Cure For Pain disponível nas plataformas é a do relançamento em vinil duplo, que ocorreu em 2021. Essa versão traz muito material extra, mostrando um lado mais experimental da banda, incluindo variantes para músicas do álbum, a faixa que acompanhava o single de “Cure for Pain” e canções até então inéditas. Vale ainda buscar pelas coletâneas B-Sides and Otherwise (1997), Sandbox: The Music of Mark Sandman (2004) e At Your Service (2009), além de seguir os projetos dos músicos remanescentes.
Nota do editor: quando comecei a escrever sobre música, na saudosa Rock Press, as edições da Natasha tinham acabado de chegar.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).