4Track Valsa e Casino – lembranças de um futuro impossível

 

 

 

Algo em que a faculdade e o mestrado em História me ajudaram foi entender a saudade, digamos, cientificamente. A partir do momento que a gente percebe o andar inexorável do Tempo, a saudade deixa de fazer sentido. Ora, se precisamos que o Tempo corra, ande, se mova e, a partir disso, nos possibilite o progresso e o porvir, o desejo de viver no passado perde o sentido, especialmente se conseguirmos olhar para tudo o que passou, não aquela partinha selecionada, destacada, que nos favorece. Balela. Eu estou tentando me enganar e a vocês. Estudar História na faculdade deu, sim, uma percepção científica do Tempo e, a partir dela, fica um pouco mais fácil lidar com seu transcorrer. Mas, ora bolas, sempre vamos sentir falta de pessoas, lugares, eventos e tal. Vejam, por exemplo, a saudade que eu estou da segunda metade dos anos 1990. É algo constante em mim, tenho a nítida sensação de que poderia ter feito muito mais do que fiz naquela época. Então, quem sabe, não seja apenas a certeza de que desperdicei chances, amigos, oportunidades. O fato é que esta impressão se traduz de formas diferentes, ela usa máscaras de cores distintas para me lembrar de sua existência. Dessa vez, de uns dias pra cá, vestiu a cara da Rock Press, suas pessoas, suas bandas.

 

 

Escrevi na revista do segundo número até seus últimos exemplares impressos. Houve fases diferentes, na casa do casal de editores Claudia e Robson, depois na redação que ficava num prédio de uma rua vizinha, no mesmo bairro carioca da Glória. Depois teve minha ida para Macaé, minha volta de lá e este inexorável avanço do Tempo, que move peças em partes distintas do tabuleiro simultaneamente. Em meio a este tempo na Rock Press, houve uma fase maravilhosa, ali por 1998/1999, quando eu ainda estava no Rio, trabalhava e ganhava um salário razoável e ainda estava cercado por pessoas maravilhosas, como minhas duas mães, meus amigos mais próximos – Léo, Bené, Vicente, Anderson, Luciano, Paula, Chrisna, Christian e outros, além de minhas cachorrinhas – e conseguia escrever na publicação mensal. Claudia era um amor, uma irmã mais velha que tive, confidente e amiga. Robson era um sujeito mais calado, sério, mas igualmente afetuoso e gente boa. Além deles, havia o pessoal que orbitava aquela redação, Flock, Bart, Carlos Lopes, Michael Menezes, Julio Jacob, Marcos Bragatto, entre outros.

 

 

Esta fase de ouro, se a memória não me trai, refletiu uma espécie de boom do indie carioca daquele tempo. Era o momento em que o zine Midsummer Madness, de Rodrigo Lariú, ele mesmo um colaborador da RP com a coluna Indiegestão, se tornara gravadora alguns anos antes, lançando fitas de vários artistas da cidade. Acho que este período de 1998/99 foi o momento em que o Rodrigo passou a lançar CDs, começando por Pelvs (“Members To Sunna”) e Cigarettes (com “Bingo”). Lembro que era um tempo de borbulhar de bandas e artistas novos lançando registros no peito e na raça, vários deles chegando à redação. Além do pessoal do MM, lembro da chegada de fitas-demo do Astromato (de Campinas), da Luisa Mandou Um Beijo (do Rio) e da 4Track Valsa, também do Rio. Eu já havia lido sobre esta última em algum lugar, era uma espécie de nova aposta da cena underground carioca, uma banda que misturava Bossa Nova com Mutantes, Portishead, Radiohead e um monte de referências. Eu pensava: “se der certo, vai ser grande, enorme”.

 

 

 

 

A gente vai ficando velho e confunde datas e detalhes, mas eu lembro que havia uma fita-demo da 4Track Valsa (que era liderada por Cecília Giannetti e Maria de Fátima) chamada “Festa”, com três canções, lançada em 1998. Depois veio um segundo lançamento, “Altas Horas”, repetindo estas três faixas inciais e acrescentando outras cinco. Foi neste momento, entre 1999 e 2000, que o 4TV assumiu um protagonismo de relevância criativa igualado apenas pelos Los Hermanos. O abismo existente entre suas propostas artísticas e as de Raimundos, Charlie Brown Jr e companhia, era imenso e definitivo. Canções como “Festa”, “Casa de Praia” e “Paulo e os Livros” traziam opções e perspectivas sonoras que a gente só ouvia em inglês. Era algo realmente pioneiro e com cara de novo.

 

 

Lariú colocou o 4TV a bordo dos Festivais Algumas Pessoas Tentam Te Fuder, que ele lançou para divulgar bandas da MM, mas que acabaram por trazer bandas gringas, como, por exemplo, na terceira edição, de 2000, na qual o Stereolab deu as caras no Rio de Janeiro para tocar no Cine Íris, um point de exibição de filmes pornô no Centro da Cidade. Na mesma noite dos ingleses, 4Track Valsa e Stellar complementaram o programa. Sucesso em meio ao caos técnico e tático para comportar a aparelhagem no diminuto palco do cinema. Até hoje eu não sei por que não fui neste show.

 

 

Depois de ter um compacto lançado no Japão, e, por conta da crescente exposição, o 4Track Valsa decidiu mudar seu nome para Casino. Já era 2001/02, eu já tinha ido de voltado de Macaé, casado, vivendo uma rotina aborrecida, mas ainda de olho no que Cecília, Fátima, Christiano Menezes e àquela altura, Júlio, Júnior e Ricardo andavam fazendo. O EP, lançado pela MM, que o grupo soltou naquele ano era, basicamente, uma continuidade do que o 4Track Valsa fazia, com um pouco mais de apuro técnico na gravação, graças ao tratamento profissional dado em estúdio, bem melhor do que a sonoridade das fitas-demo anteriores que, mesmo criativas e exuberantes, padeciam dos problemas técnicos. Com aparições na MTV e show fora do Rio, o Casino/4TV foi padecendo por conta destas questões de infraestrutura sonora pelos palcos indies do país.

 

 

A sonoridade da banda exigia um apuro técnico muito superior ao disponível e isso gerava atrito entre os integrantes do grupo, contratantes, organizadores etc. Mesmo com a ótima vontade da imprensa especializada, com um público em formação e apoio de um selo independente, o próprio MM, o Casino não sobreviveu aos desentendimentos internos e deixou de existir em 2003. No ano seguinte, segundo o site da Midsummer Madness, Fátima e Cecília ainda se apresentaram em dupla – uma vez que os outros integrantes haviam zarpado – e fizeram o último show do Casino.

 

 

O tempo levou meu EP do Casino. As demo tapes ficaram nos arquivos da Rock Press, há muito encerrada. Ano passado, a querida Claudia faleceu. Ou seja, a vida, esta sucessão inabalável de idas e vindas, segue seu rumo misterioso, respaldada pelo Tempo. Não há canções do 4TV ou da fase Casino no streaming, mas há no Youtube. Outro dia eu mesmo subi para o site um áudio de “Ponte”, minha canção preferida do EP que o grupo lançou em 2001. Felizmente, há outros canais com alguns poucos vídeos e o áudio completo da fita “Altas Horas” e suas oito faixas. Vale ouvir e conferir como se tratava de uma banda à frente do tempo e à margem do óbvio.

 

 

Salve Rock Press, salve Midsummer Madness, salve 4Track Valsa/Casino e todos os envolvidos neste habitat fervilhante que foi o rock underground carioca dos anos 1990, um mapa ainda precisando de cartógrafo habilitado para desenhar com precisão suas fronteiras.

 

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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