As misturas musicais de “Blue Lines”

 

 

 

Interessante como as misturas musicais podem ter dinâmicas e ingredientes bem distintos. É o que ocorre quando comparamos o cenário estadunidense ao britânico – na verdade, uma parcela de ambos – na entrada dos anos 90 do milênio que passou. Blue Lines diz muito sobre essas misturas.

 

 

O lineup do primeiro Lollapalooza, realizado em 1991, incluía, entre outras bandas, Jane’s Addiction, Siouxsie and the Banshees, Living Colour, Nine Inch Nails, Ice-T & Body Count e Butthole Surfers. Ou seja, a variedade era bem grande, indo do pós-punk sofisticado ao hardcore em distintas versões, passando por fusões que contemplavam gêneros bastante diversos.

 

 

Não dá para entender o “som de Seattle” que se consolida na mesma época se não consideramos os cruzamentos entre o punk e o metal, ao lado de elementos menos marcantes – mas no caso de algumas bandas não menos importantes. O projeto Temple of the Dog, por exemplo, está repleto de blues, gênero que teve alguma influência sobre Kurt Cobain, que adorava Lead Belly.

 

 

Pois bem, se você acha que já tinha bastante coisa aí, vamos dar uma olhada no que rolava do outro lado do Atlântico. Mais especificamente em Bristol, Inglaterra. Como Seattle, Bristol é uma cidade periférica no seu país. Como Seattle, sua cena musical vai se beneficiar das vantagens de não ser uma grande metrópole. Ao longo dos anos 80, sua escala e os ingredientes que nela se reúnem a tornaram um verdadeiro laboratório.

 

 

Bristol foi um dos portos pelos quais ingressaram seres humanos e produtos mercantis espoliados pelo colonialismo. A presença negra volta a ser marcante no século XX, quando a cidade atrai populações caribenhas no pós II Guerra Mundial. Sua composição étnica e seus patrimônios a qualificavam como uma província multicultural.

 

 

Nesse ambiente, proliferam nos anos 80 os sound systems, uma invenção importada da Jamaica junto com o reggae e o dub. Em Bristol, contudo, os sound systems assumiam um estilo que se parecia com as bloc parties de Nova York. Por isso já incorporavam o hip hop estadunidense, mas não só, pois as pick-ups eram frequentadas por vinis de R&B, funk, soul, house e eletro. Nesse caldeirão se formou alguém como Roni Size, DJ e produtor crucial nos desdobramentos do drum and bass e do trip hop.

 

 

Havia mais: o aplauso e o suporte do vocalista daquela que fora a principal banda pós-punk de Bristol. Mark Stewart liderou a Pop Group, que lançou dois álbuns em 1979 e 1980, com sonoridades que resultavam de incorporação ao rock de elementos e inspirações vindas do reggae, funk e jazz. Para Stewart, que continuou atuando como agitador cultural na cidade, os sound systems e suas festas de rua estavam em total sintonia com o faça-você-mesmo do punk.

 

 

Um dos sound systems que se formaram e evoluíram nos anos 80 foi o Wild Bunch. O quinteto que foi se consolidando na sua composição juntava três caras negros (Grant Marshall, Miles Johnson e Willy Wee) e dois brancos (Nellee Hooper e Robert Del Naja). Todos eram DJs e rappers, e alguns se desdobravam para se dedicar ao grafite.

 

 

Bristol estava longe de ser um paraíso racial, muito pelo contrário. Em meio a tensões e fricções, a música foi produzindo encontros entre pessoas e sonoridades. Aí estava uma diferença com a cena de Seattle, onde as misturas quase nunca escaparam à linha racial, mantendo-se do lado da “música de branco”.

 

 

Do carnaval, das festas, das batalhas de DJ e dos clubes de Bristol, caminhos foram se abrindo para o Wild Bunch, que chegou a passar um tempo longo em Tóquio no ano de 1987. À mesma época, lançaram um EP por um selo da Island, gravadora que investiu fortemente em fusões do pop e do rock com musicalidades negras.

 

 

Ao final da década, no entanto, o coletivo se desmanchou. Miles partiu para os Estados Unidos, Nellee se fixou em Londres e tornou-se parte da Soul II Soul. Bristol voltou a ser casa de Marshall e Del Naja, mais conhecidos como Daddy G e 3D. A Massive Attack formou-se quando a eles se juntou o DJ Andrew “Mushroom” Vowles, com a frequente colaboração de Adrian “Tricky” Thaws como rapper.

 

 

Colaboração, aliás, é uma palavra chave para se entender a Massive Attack. Seu primeiro álbum é cheio de participações, sobretudo nos vocais, como logo veremos. Uma ajuda fundamental veio do casal Neneh Cherry e Cameron “Booga Bear” McVey. Cherry havia participado da cena pós-punk britânica do início dos anos 80 e ao longo da década incorpora o rap a sua atuação. Junto com McVey, ela foi a principal incentivadora – inclusive financeira – para a gravação de Blue Lines.

 

 

Outro ponto importante: a Massive Attack não se enquadra na definição mais corrente do que seja uma banda. Seus instrumentos são as vozes e as pick-ups. A lógica da composição corresponde muito mais ao hip hop, com suas colagens a partir de músicas já gravadas. Daí que uma geringonça chamada sampler desempenhe tamanha importância para o trio.

 

 

O que torna a estreia da Massive Attack tão interessante é que essa máquina hip hop é utilizada para processar e incorporar outros gêneros, em especial o reggae, o jazz e o soul. Também nas letras, apenas parte do estilo do hip hop é mantida, abrindo espaço para textos e temáticas em linha com o rock e o pop alternativo.

 

 

“Dance music para a cabeça, mais do que para os pés”, declarou 3D, isso era o que pretendia a Massive Attack. Nesse caso, o contraponto era com a cena rave e as bandas associadas com ela na Inglaterra de então. Embora aí tenha rolado também muita mistura, como vemos no terceiro álbum da Happy Mondays, o pessoal de Bristol mostrou-se mais consistente com sua junção de ancestralidade e futurismo.

 

 

Registradas entre 1990 e 1991, as músicas de Blue Lines foram gravadas quase todas em dois lugares, o Coach House Studio em Bristol e o apartamento do casal Cherry-McVey em Londres. Jonathan Peter Sharp (aka Jonny Dollar), que era próximo do casal, atuou na produção e o LP foi distribuído pela Virgin.

 

 

Cada música do álbum lança um desafio àqueles que buscam esmiuçar a sua composição. Façamos o esforço, apontando os ingredientes e inspirações de suas magistrais colagens. O comentário está longe de ser exaustivo e apenas acrescenta informações para o devido trabalho dos ouvidos.

 

 

“Safe from Harm” abre o álbum com sua linha de baixo de altíssima potência. Pois essa linha, que continua soando muito bem, vem de uma faixa lançada no álbum de 1973 de Billy Cobham, verdadeira entidade do jazz fusion. Também dessa faixa vem os riffs de guitarra. Já a bateria é tirada de “Good Old Music”, que integra o álbum da Funkadelic de 1970. Essas bases ganham o acréscimo de teclados, também sampleados. A parte vocal é notável, um jogo de contrastes entre a voz soul de Shara Nelson e os raps de 3D e Daddy G.

 

 

Nelson, que já havia colaborado com o Wild Bunch, contribui em outras três faixas de Blue Lines. Ela está sozinha no vocal de “Lately”, salpicada pelos scratches de Mushroom. A base é suprida por um sample do funk/soul “Mellow Mellow Right On”, na gravação de Lowrell Simon, 1979, intercalada por breves inserções de uma levada de bateria de uma música de Isaac Hayes.

 

 

A participação mais importante de Nelson ocorre em “Unfinished Sympathy”, na qual sua voz também domina. A letra da música é de sua autoria. Acrescentada de bells hipnóticos, a percussão vem do looping de um segmento de “Parade Strut”, faixa de J.J.Johnson divulgada em 1974 na trilha de um filme de blaxploitation. Sem linha de baixo, o que dá corpo à música é um arranjo de cordas idealizado por Jonny Dollar. Para registrá-lo, uma orquestra de 40 instrumentos foi contratada, registrando sua contribuição no Abbey Road Studios. O resultado é sublime.

 

 

“Daydreaming” é outra pérola. Nesse caso, toda a base, devidamente turbinada, vem de uma faixa cheia de groove do álbum Echoes de Wally Badarou, um dos integrantes do Compass Point All Stars, banda montada por Chris Blackwell, da Islands Records, que dez anos antes gravou Nightclubbing com Grace Jones. Em “Daydreaming”, a voz de Nelson flutua, esparsa, cedendo espaço para os rappers da Massive Attack, com destaque para Tricky.

 

 

A faixa que batiza o álbum tem como base (bateria e teclado) uma música de Tom Scott and the LA Express, de 1974. A guitarra, discreta, é surrupiada da The Blackbyrds de 1975. É a única faixa que registra crédito ao baixista Paul Johnson. Em cima de todo esse soul e jazz, se alternam as vozes dos rappers, incluindo novamente Tricky.

 

 

“Five Man Army” toma emprestado o dub de mesmo título do reggaeman jamaicano Dillinger e sua banda, lançado em 1982. A essa linha de baixo, também utilizada em uma das faixas do primeiro álbum da Soul II Soul, a Massive Attack acrescenta a bateria suingada de uma música de Al Green. De novo, o rap corre solto.

 

 

No backing vocal de “Five Man Army”, ouvimos a voz de Horace Andy. Andy é o participante sênior do projeto, com uma trajetória associada a uma vertente do reggae rotulada de lover’s rock. Sua voz se torna a principal em “One Love”, com sua batida lenta, mas marcada, retirada do trecho de uma música da Mahavishnu Orchestra (1971). Outra música, de Isaac Hayes, comparece com toques especiais.

 

 

Andy é também a voz principal em “Hymn Of The Big Wheel”, com sua letra de temática ambientalista composta por Neneh Cherry e 3D. Nesse caso, parece que não houve sample de outras músicas. A bateria eletrônica compõe a base e teclados se encarregam das melodias e dos efeitos.

 

 

Resta comentar a última das nove faixas de Blue Lines, “Be Thankful For What You’ve Got It”. Aqui, em vez de um sampler, temos propriamente uma versão do R&B de 1974, registrado por William DeVaughn. Tony Bryan, que já havia colaborado na faixa “Any Love” (afinal, não incluída no álbum), assume os vocais. Com a Massive Attack, um clássico da black music se transforma em um cybersoul, e pode ser tomado como um emblema das homenagens que a banda presta à música negra setentista.

 

 

Cada faixa de Blue Lines tem características próprias em relação às demais. Mesmo as que têm uma identidade mais reggae ou hip hop ou soul, estão permeadas por uma variedade de influências outras. Com misturas e costuras engenhosas, a Massive Attack produziu um estilo de música eletrônica que precisaria de um novo nome para rotulá-lo: trip hop.

 

 

O álbum veio cercado de quatro singles, que, juntamente com as versões registradas em Blue Lines, trouxeram ou propiciaram remixes assinados por outros produtores, entre eles Nellee. Os remixes acrescentavam novas camadas de colagens às originais, se é que podemos usar esse termo em um processo que utiliza outras bases para a criatividade.

 

 

Se procuramos por apresentações da Massive Attack na esteira de Blue Lines, vamos encontrar pouquíssimos registros. Em contrapartida, quatro faixas foram acompanhadas por vídeos, uma linguagem na qual a banda se esmerou. Aliás, a capa do álbum é icônica, com a intervenção de 3D sobre uma placa sinalizando substâncias inflamáveis.

 

 

Músicas, vídeos e capa fizeram parte da repercussão de Blue Lines. “Unfinished Sympathy” e “Safe from Harm” foram apresentadas no Top of the Pops, programa de TV britânico em sintonia com os índices de execução. O álbum foi bastante elogiado pela crítica, na época e até hoje. Sua influência é literalmente massiva e ele estabeleceu um ponto de partida promissor para a trajetória seguida pela banda.

 

 

A inserção da Massive Attack na música pop não deve nos fazer esquecer do principal: traficantes de sonoridades negras, o coletivo é mais uma camada na multiplicação das áfricas. Blue Lines mostrou que, debaixo do nariz da rainha, o rock poderia ir bem além do Brit Pop.

 

 

* Observação: para os comentários sobre os samples e composições, duas fontes foram fundamentais: https://www.whosampled.com/search/tracks/?q=massive+attack e https://massiveattack.ie/info.

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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